quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Modigliani escultor.


Modigliani foi o pintor trágico por excelência da Paris efervescente do início do século passado. E talvez essa tragicidade, ao mesmo tempo que gera mais aproximação em relação ao artista, pode contribuir para obscurecer aspectos de sua obra: é o que se passa no filme estrelado pó Andy Garcia. Deixe-se então de lado o mito, uma vez que ao se trata de ética, e parta-se para a sua obra. As primeiras pinturas de Modigliani pouco têm que ver com as quais o consagrará. Contudo, toda a sua produção, por mais que se divirja, cabe dentro do universo pictórico pós-impressionista. E fato é que o artista italiano não se enquadra em nenhum dos movimentos que esbanjavam naquela época; como ele, muitos outros, a exemplo de Soutine e Utrilo, amigos seus, bem como Chagall e Van Dogen, para citar alguns do que é conhecido como Escola de Paris: como esses artistas expatriados não aderiram a movimento algum, mas todos viviam em Paris, deu-se essa denominação. E, por lá viver, Modigliani acaba por sofrer algumas influências comuns entre os artistas da época, como é o caso da absorção da escultura africana recém-descoberta, a qual contribui necessariamente para o cubismo sintético. Contudo, como se verá, as demais influências do artista diferem das dos demais.
Modigliani carrega sempre consigo grande influência da arte italiana, uma vez que fora educado na Itália, e mais precisamente, na fruição das obras da antiga sede das belas artes. Entretanto, nas primeiras pinturas pouco se percebe isso, mas, antes, muito de pós-impressionismo, dado o ciclo no qual conviveu em seu país de origem. A guinada artística decisiva para o italiano se dá pelo conhecimento de Brancusi e sua escultura. Ao tomar contato com este, aquela abandona a pintura e passa a se dedicar à escultura, e aí se inserem os estudos das cariátides, as quais representam a primeira vinculação de Modigliani à tradição da antiguidade. Ademais, os seus desenhos de cariátides já revelam a dívida com Brancusi e com a escultura africana. No entanto, devido a problemas de saúde, Modigliani consegue suportar o pó extraído das pedras que esculpia, e, assim, tem que abandonar a escultura. E, uma vez deixada de lado essa forma artística, ele irá se dedicar novamente à pintura. Pode-se estranhar tratar de um Modigliani escultor quando o artista tão pouco produziu nesta ceara; e mesmo se tratará mais aqui de pintura. Acontece que apenas pelo contato com a escultura é que se dará o futuro Modigliani e toda a sua contribuição para a pintura.
O contato do artista italiano com Brancusi e a escultura negra, o que direcionava o seu próprio esculpir, é fundamental no tratamento do rosto na pintura, o qual advirá de suas cabeças de pedra. E, desta maneira, ter-se-ão os rostos alongados, os olhos em elipses, os narizes e bocas bem marcados. Contudo, isso é pouco para diferenciar Modigliani do cubismo ou do expressionismo, onde, por vezes, têm-se disposições faciais semelhantes; aqui entram em cena mais influências do artista as quais não foram aproveitadas pelos demais pintores na representação humana. Sim, pois, para “o nosso aristocrata” tratava-se quase que exclusivamente de pintar figuras humanas; e, neste sentido, ainda pode ser percebida outra diferença entre os “membros” da Escola de Paris em relação a seus contemporâneos. Assim, ainda se tem outra marca do esculpir na pintura de Modigliani, qual seja, a noção de volume, a qual será fundamental para os seus nus, os quais diferem bastante das representações de nus de seus contemporâneos justamente pelo volume que o artista italiano consegue imprimir a ele, sem mencionar na carnalidade que ele exalam, do que se falará mais tarde.
No percurso de seus estudos e influências italianas, Botticelli se estabelece como marca fundamental na concepção e estilização das figuras humanas daquele artista trágico. Notadamente “O nascimento da Vênus”, do pintor proto-renascentista é capital para a suavidade e sensualidade que Modigliani colocará em seus quadros. Não por acaso que ele era tratado como um “Botticelli moderno”. E o próprio Botticelli tem o seu que de modernidade ao alongar o pescoço e abaixar os ombros de sua Vênus para poder suavizá-la. E, assim, percebe-se de onde Modigliani extrai como seu estilo os pescoços longos e os ombros caídos, bem como o rosto ovalado e esticado, advindos tanto do pintor da Vênus como da escultura negra. Ademais, o diálogo de Modigliani com a tradição pictórica não pára aí, não se restringindo a arte italiana; tem-se ainda leituras de Goya, Ingres e Manet. Ou seja, a sua educação para o tratamento do corpo depende mais da tradição do que da efervescência das vanguardas.
Por fim, a última e decisiva influência de Modigliani é a escultura greco-romana, ou pelo menos o que se ficou dela, mais precisamente no que se refere ao olho. Exatamente o tratamento dispensado aos olhos pela escultura clássica antiga, i.é., a representação dos olhos sem pupila, mas como único contínuo, onde não se expressa nada, será decisivo utilizado pelo artista italiano. É bem verdade que, pelo menos na escultura grega tinha-se o uso de pedras coloridas para a representação do globo ocular. Conduto, essas peças se perderam e o que restou foram aquelas nas quais a superfície do olhar é tratada como uma única, contínua e vazia superfície, a qual não se sabe para onde olha. Excetuado-se a mudança da cor do rosto e do olho, é isso o que faz Modigliani ao pintar tudo aquilo que poderia ser considerado “olhar” com uma única cor, retomando aquela tradição escultórica na qual se dá o instante kierkegaardiano. Este, a saber, consiste na possibilidade de eternidade na temporalidade, e o filósofo dinamarquês encontra uma representação do instante naquele tipo de escultura, como se vê no “Conceito de angústia”. Assim, Modigliani devolve à arte a noção de instante, quiçá não pregnante, como fala Aumont a respeito da pintura clássica, mas, quem sabe, um instante de vazio, como se pode perceber em Hopper de maneira diferente. A própria condição de eternidade é quase que interente a arte; e aí, pode-se falar com Kierkegaard: é uma eternidade no temporal, ou, um efêmero eternizado.
A partir de tudo o que foi posto, Modigliani consegue resgatar duas noções para a arte de vanguarda as quais pareciam estarem perdidas. A primeira vem em negação a Ortega y Gasset e sua desumanização da arte: se cubista e expressionistas contribuíram para o tratamento da figura humana de maneira não humana, Modigliani, assim como alguns dos “membros” da Escola de Paris, começam por reconstituir as características humanas na pintura, por mais que ainda façam uso de algumas mesmas influências que aqueles artistas. A segunda terá que ver com o volume, suavidade e sensualidade que o artista italiano imprime em suas peças: Modigliani resgata a carnalidade perdida na pintura, e, aqui, tem-se que ser extremamente camusiano na exigência de um “suporte de carne” para a criação artística ou filosófica. Assim sendo, não se tem mais aqueles “criadores de irrealidades” dos quais falava Ortega y Gasset a despeito do cubismo e do expressionismo. E, se esses para o filósofo espanhol são artistas intrascendentes, com Modigliani desce-se um nível a mais na escala da imanência e chega-se a própria carnalidade, mais das vezes sensual. Ora, toda essa guinada pictórica feita por Modigliani só é possível quando da guinada do Modigliani escultor.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A propósito de “O Mistério de Picasso”, de Clouzot.


Como trata Ortega y Gasset em sua revisão da história da arte a partir do ponto de vista do pintor, os cubistas seriam “criadores de irrealidades”, uma vez que o ponto de vista vai se retraindo até romper a barreira ocular, chegando ao que o filósofo chama de intra-subjetivo. Isto fica posto no ensaio “Sobre o ponto de vista na arte”. No texto maduro e convergente de algumas idéias encontradas no referido ensaio, ou seja, em “A desumanização da arte”, o autor coloca que a arte jovem, a arte de vanguarda, é uma arte artística, uma arte para artistas, devido necessariamente a esse ponto de vista intra-subjetivo, o qual cria irrealidades. Contudo, veja-se se é isso o que se passa quando da apreciação do filme “O Mistério de Picasso”, de Henri-Georges Clouzot. Na referida película vê-se o artista espanhol em work in progress, como era de seu feitio se apresentar. Para tanto se fez necessária a utilização de material especial para que as obras pudessem ser capturadas pela câmera. Mas volte-se à questão a qual inicia o texto.
As obras apresentadas por Clouzot pouco têm que ver com o cubismo analítico, o qual se propunha a oferecer de uma só vez todos os lados de um objeto, daí a sua natureza de recorte e de composição de ontologias regionais, para citar um termo husserliano bastante aparentado. A exceção das pinturas em preto e branco, nas quais se pode perceber de uma só tacada a fronte e o perfil de um mesmo rosto. Tem-se, por seu turno, expressões do cubismo sintético, o qual parte tanto do problema principal da pintura de Cézanne quanto da escultura africana para a estilização da representação humana. E eis por que Ortega y Gasset trata a arte de vanguarda como desumana; ela pretende fugir de uma representação que pinte o homem como ele aparece, como se dá na realidade. Nesse sentido para ter razão o filósofo espanhol em falar de uma criação de irrealidades; no mínimo, uma arte que busca prescindir algo do real, até chegar à radicalização com a pintura abstrata. Entretanto, faça-se um parêntese e se volte ao filme.
Narra Clouzot o quão bom seria caso se pudesse apreender a criação de um Rimbaud ou de um Mozart. E é isso que ele pretende e mostra em seu filme, salientando que a pintura seria uma arte mais própria para tanto. Contudo, a noção decisiva para a análise sem a ser a do erro. Fala ainda o diretor que se poderá perceber esse olhar no escuro da branca tela a partir do qual o pintor constrói a sua obra. Chega quase a ser um leitura mais afeita à escultura, como se o ser pintado já residisse na virgem superfície; antes a pintura trabalha com a adição, em vez da subtração, como na escultura em mármore: desta feita, é mais próxima de Giacometti do que de Michelangelo. A possibilidade do erro, ainda mais na construção por adição, demonstra o caráter de devir da criação artística. Assim sendo, embora já se tenha em mente algo acabado o qual se quer produzir, a própria natureza da obra, por assim dizer, exige alterações no imaginado para que se alcance uma realização cabal. É fundamental quando Picasso de que está satisfeito ou insatisfeito com o que estava a fazer. Demonstra a própria fluidez do ato artístico enquanto atualização. Embora a obra acaba possa carregar uma noção de momento apoteótico, como trata Nietzsche, apolíneo em sua “necessidade” de assim o ser, apreende-se a noção de devir na própria criação. Esta, portanto, faz parte do real nisso em que, nos termos metafísicos, vem-a-ser. Ou seja, sendo o devir componente indiscutível do real, da natureza, tem-se, então, na fluidez da criação artística a sua pertinência e afirmação, até certo ponto, do real. Contudo, uma representação, seja ela artística ou não, nunca esgotará a vida, pois, para isso, seria necessário que ela tivesse e chegasse a um fim, o qual seria estabelecido. Tem-se, assim, do qual fala Camus como umas das possibilidades de se dar a arte.
Entretanto, perceba-se ainda outro momento do filme, qual seja, a última obra criada por Picasso. Nela, o artista espanhol começa pintando algo bastante diferente daquilo que deixará por final. E não se trata aqui da alteração de uma cor, uma luz, um efeito que viesse a calhar melhor na representação do ideado, o que faria parte do “erro”. A questão que se passa é a mudança na própria temática, do próprio representado que vai mudando seguidamente com progress of the work. Não vem nem a ser a mudança de uma representação clássica para uma cubista, como acontece na peça do touro chifrando o toureiro. É a mudança de uma mulher de biquíni na praia para um casal, e desta para uma mulher sozinha... Trata-se da fluidez, do devir permanente da obra, sempre se recriando até que... fenece. No devido caso, Picasso destruiu todas as obras que fez, e Omo que elas não permaneceram como aquele momento apoteótico referido outrora, como efêmero eternizado. À sua destruição encerrou o seu caminho no devir de ser.
Contudo, a destruição das obras fazia parte do contrato, quiçá para qualquer função em relação ao filme. Mais das vezes mantém-se a obra como o momento apoteótico, como efêmero eternizado, como... afirmação da vida a partir da criação artística. E, desta feita, estabelece-se não só o seu caráter de realidade, mas a sua própria manifestação e razão de ser advindas da realidade.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

"Elefante", de Gus van Sant.


Os fatos ocorridos em Columbine, através da lente de Gus van Sant, fornecem possibilidades de abordagens as quais não seriam possíveis se não fosse o estilo adotado pelo diretor, e o qual persiste em sua película seqüente, “Últimos Dias”, que trata dos dias finais de um astro do rock, remetendo necessariamente a Kurt Cobain. O fato é que em ambos os filmes van Sant se utiliza de um ritmo extremamente lento e silencioso, como fosse um discípulo de Antonioni ou de Visconti. Isso possibilita um distanciamento por parte do espectador, não permitindo a catarse, qual parecia ter seu último reduto no cinema. E justamente essa impossibilidade catártica oferece uma condição de epoché, por assim dizer, para que se analise a situação representada. Ainda nesta esteira, dada a economia do argumento do filme, van Sant parte para a representação das perspectivas dos envolvidos no acontecido. Assim, a escolha de mostrar o fato da maneira mais imparcial possível, sem buscar qualquer explicação que se baseasse num arremedo sociológico, o diretor a possibilidade de apresentar o ponto de vista individual de cada personagem.
Conhece-se a história; o que ela desvela quando passada para a tela por Gus van Sant são considerações acerca da vontade de afirmação ou negação de vida. Tratar-se-á então, aqui, do cerne da preocupação ética de Schopenhauer, notadamente por dois vieses: por um lado o assassinato seguido de suicídio, e, por outro, a questão do tédio.
A aporia principal da consideração ética de Schopenhauer é a incapacidade de realização plena da vontade, donde, satisfeito um desejo, advém logo outro que causará, mais ou menos, dor, até que venham a sua realização e o fugaz prazer proporcionado por este; e assim indefinidamente quando tratado das objetivações da Vontade. Para o filósofo esse é o irreconciliável essencial da vida, o qual se tem que afirmar ou negar. Isso estabelecido, o primeiro viés proposto se fundamente na ligeira passagem onde o autor comenta o assassinato de filhos por parte do pai e o seguido suicídio deste. A explicação se dá na percepção desse dilema da vida, por parte do pai, e o conseqüente desejo de poupar seus filhos dessas circunstâncias, levando-o ao infanticídio; e, dada a reflexão do pai a respeito do fato ocorrido, tem-se o seu suicídio. A partir dessa leitura, ter-se-ia a já referida percepção do dilema da vida e a decisão por parte dos assassinos de poupar seus colegas de tal sorte no evento de Columbine. Contudo, isso soaria muito altruísta, por assim dizer.
A questão do tédio é mais capital, tanto para Schopenhauer como aqui. Esse se estabelece quando da satisfação das vontades de um dado individuo e a seguinte incapacidade de se desejar mais alguma coisa. Pensar-se-ia que seria a resolução do dilema da vida. Contudo, para o filósofo, vivendo-se na continua sina da objetivação da Vontade, esse individuo que satisfez todas as suas vontades acaba por não mais gozar delas, uma vez que o prazer da realização de um desejo é fugaz; ou seja, não constante porque não construção – chegar-se-á a isto mais tarde. Desta feita, ainda hás o desejo de querer algo, sem que se saiba onde aplicar esta volição: instaura-se o tédio. Parece ser esse o caso de Columbine. Assim sendo, o que poderia ser condição para bem-aventurança ou eudaimonia não se realizada dada a não fruição do prazer obtido, engendrando assim o desejo de desejar para que se possa novamente gozar outra satisfação. Tem-se, portanto, a incapacidade de afirmação total da vida, donde então se abre a porta para a negação desta.
Contudo, faça-se antes uma distinção no referente caso. Ao tempo em que Schopenhauer coloca a Vontade como cega, ele também a põe dentro de uma unidade dinâmica, onde a negação da vontade de vida de um dado vivente é condição para afirmação da vontade de vida do outro que negou aquela. Isso se passa no livro que trata da filosofia da natureza. Entretanto, no livro destinado à ética, por se tratar nele do homem, o filósofo insere as noções de reflexão, bom, justo etc., neste tocante da negação de vida de um indivíduo para a posterior afirmação de outrem, ao mesmo tempo em que baliza essas ações a partir das noções inseridas. Desta feita, a afirmação da vontade só deve ir até onde não negar a vontade de outrem. E o que se passa em Columbine não é absolutamente o caso da necessidade de negação da vontade de outrem para afirmação da sua própria. E, ao cabo, os assassinos negam a si mesmos.
Ainda outra distinção: no livro dedicado à estética, Schopenhauer coloca o acesso ao conhecimento da coisa-em-si através da arte, quando entra em cena o puro sujeito do conhecer destituído de vontade. Ademais, seria a fruição estética uma contemplação desinteressada do objeto artístico. Donde, tanto o fazer artístico quanto o fruir estético, ambos calcado na noção de gênio, oferecem essa possibilidade. Assim sendo, pela noção de um sujeito sem vontade e de uma contemplação desinteressada abre-se a oportunidade de se fugir do julgo da vontade, do desejo, nem que seja uma fuga momentânea. Agora se lembre da cena em que um dos assassinos toca a Sonata ao luar, de Beethoven, ao piano: nem o próprio fazer artístico ou o seu fruir não são capazes de manter os dois jovens longe da necessidade de satisfação de uma vontade a qual não sabem desejar. Ou seja, a saída estética é negada; o tédio é total.
Por fim, a própria redenção, como posta no livro da ética, através da compaixão e abnegação uma vez compreendido o dilema da vida e a incapacidade e aceitação em não resolve-lo também é impossível para aqueles assassinos. Fixa-se o tédio absoluto, que engendra assassinatos os quais não são necessários para a afirmação da vontade de vida daqueles jovens, e, por fim, o suicídio, que também não resolve o problema da vida nas objetivações da Vontade. Tem-se, portanto, uma sociedade do tédio, a qual não sabe mais o que desejar quando as vontades são satisfeitas e que também não sabe gozar os prazeres que tem.
Agora, pense-se neste texto de Nietzsche, em A Vontade de Poder: “Outrora, com a moral, se pretendia conservar: mas ninguém agora quer mais conservar, pelo fato de que não há nada para conservar. Há, portanto, uma moral que busca: que busca dar-se um alvo”.
Permute-se a afirmação da vontade de vida por este “conservar” do filósofo dionisíaco. Primeiro tem-se as ações com o fim de se conservar. Contudo, quando a vida já está conservada, perde-se este fim e quer-se buscar um outro, sem bem saber qual. No fundo seja um problema teleológico. Quando o fim é alcançado não se sabe mas o que se faça senão a procura de outro fim. Remetendo-se a Aristóteles e sua ética teleológica, chegar-se-ia aqui à felicidade, ou eudaimonia. Contudo, o problema capital é que para o Estagirita a felicidade é uma construção, ato contínuo, o que não se demonstra no referente caso. E, enquanto construção, nunca se chega ao fim e depois o goza passivamente. E eis que para Aristóteles a felicidade se constitui no filosofar, ou seja, no sempre investigar, e, assim sendo, na contínua construção e fruição do fim em direção ao qual age. Aqui se apresenta uma nova noção determinante.
Enquanto filósofo parece claro que Aristóteles eleja o filosofar como culminância da felicidade. Contudo, se a noção de um fim se mostra complicada, dada a própria maneira como o mundo se apresenta (e tenha-se em mente o eterno retorno), quiçá um fim eticamente estendido a todos. Estabeleça-se que, enquanto sempre necessidade de satisfação, portanto, na medida em que se tem que viver sempre em construção de si, por si, aja-se continuamente e consiga-se fruir os pequenos prazeres, sem alvejar ou criar um fim que não existe.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A condição da arte em “A queda da casa de Usher”, de Jean Epstein.


Existem algumas diferenças entre o conto “The fall of the house of Usher”, de Edgar Allan Poe e a versão para cinema “La chute de la maison Usher”, de Jean Epstein. No primeiro o casal Usher é concebido por dois irmãos gêmeos; no segundo se trata de marido e mulher. A outra diferença é quanto à morte da personagem feminina. No conto de Poe não se sabe ao certo o que provoca o dito falecimento; no filme de Epstein há uma informação nesse sentido: a pintura. Ainda, enquanto no escritor norte-americano o tanto narrador-personagem quanto Roderick Usher passam tempos pintando, na película do diretor francês o primeiro já encontra o seu amigo a pintar avidamente o retrato da própria mulher. O primeiro veredicto, na película – e adiante se tratará apenas dela – que Roderick emite acerca do quadro de sua mulher p que “ela vive ali”. Fixe-se nisso. O segundo comentário por parte daquele que pinta é que sua mulher parece fenecer mais a cada pincelada que ele dá na pintura que a representa. Também se conserve isso.
A questão se passa como um Dorian Gray ás avessas: a mulher se degrada para que o seu retrato ganhe beleza, enquanto que no romance de Wilde se dá o contrário: para que o personagem mantenha a sua beleza faz-se necessário que o seu retrato se deteriore. Eis o leitmotiv da presente exposição, a saber, a relação entre arte e realidade, e em qual medida uma solapa a outra e, desta feita, qual posicionamento tomar ante tal dicotomia.
A primeira assertiva proferida por Roderick baseia-se justamente na segunda: ela só pode viver ali (na tela) porque a cada pincelada dada por ele a sua mulher chega mais perto da morte; ou seja, se esse algo real fenece, ele só poderá substituí-lo em sua representação. A questão capital é por que continuar a pintar se isso implica o desaparecimento da coisa propriamente dita? Lembre-se o artigo sobre Pasolini e a sua “Trilogia da Vida”, mais precisamente a pergunta com a qual se encerra “Decameron”: “Por que fazer arte se sonhar com ela é tão mais doce?” Assim sendo, por que fazer arte se esta nunca irá conseguir esgotar a própria vida, o próprio real, o próprio efetivo? A resposta que Pasolini fornece em “The Canterbury Tales” não interessa agora.
Estabeleça-se a problemática da arte e da efetividade (por assim dizer, esse mundo). É necessária esta terminologia. Comece-se pelo veredicto que possibilita o outro: a cada pincelada ela morre. Assim sendo: tanto mais a arte se estabelece mais ela impossibilita a manutenção do real (efetivo). Pense-se então em Platão: basicamente para o filósofo grego este mundo nada mais é do que aparência, a qual é cópia de uma Idéia que propriamente é, tem o seu ser, pelo fato de sempre existir, e de nunca participar do devir. Desta forma, sendo este mundo aparente cópia do mundo supra-sensível da Idéias, e, a arte sendo uma cópia do mundo aparente, como se estabelece no Livro III de “A República”, a arte não poderá ser o acesso privilegiado para a Idéia; ou contrário, este acesso será a investigação epistemológica, e, portanto, filosófica. Ressaltando ainda que o termo grego para arte equivale ao mesmo termo para técnica, esse raciocínio se estabeleceria ainda mais nas artes, por assim dizer, manuais (donde se entenda o privilégio da arte palavra, encontrado no Íon, uma vez que esta terá mais que ver com o pensamento, o qual, para o filósofo, é o diálogo da alma consigo mesma). Portanto, aqui, posta a arte tem-se a negação do que é.
No sentido contrário, pegue-se a outra assertiva de Roderick: “ela vive ali”. Ou seja, uma vez que a cada pincelada a personagem fenece, ela passa a viver na tela pintada, na sua representação, por tanto, o que corrobora e alargar a consideração de que, uma vez posta a arte, o real se esvai, perdendo, por assim dizer, o seu ser. Entretanto, aqui se insere uma guinada na maneira de se conceber a condição da arte. Desta feita temos a obra de arte como o lugar privilegiado onde reside o próprio ser do que é representado, uma vez que este “vive ali”. Por mais que soe estranho, isso se nos mostra através das concepções estéticas de Schopenhauer, a qual vem a ser diametralmente oposta a consideração platônica exposta acima. Para o filósofo alemão, o conhecimento que se pauta dentro do princípio de razão, baseado no tempo, no espaço e na causalidade, conhece apenas a relação das coisas, mas não estas mesmas; assim, o conhecimento a partir do princípio de razão apenas apreende o fenômeno, mas não a coisa-em-si. Falando de maneira platônica, aquele tem que ver com o conhecimento do que “vem a ser e nunca é”, não chegando a conhecer, portanto, o que sempre é. Dada essa aporia em sua teoria do conhecimento, Schopenhauer resolve o problema do conhecimento da coisa-em-si através da estética. Para tanto o filósofo de Frankfurt insere a noção de puro sujeito do conhecer destituído de vontade, que, através da excitação genial conhece as coisas mesmas, não seus fenômenos relacionados com outros. Ademais, note-se que aqui a obra de arte consiste em um medium facilitador para a apreensão da coisa-em-si. Destarte, tem-se aqui a arte como o lugar privilegiado onde se pode conhecer aquilo que em verdade sempre é, em sua idealidade (e conserve-se o sentido platônico de Idéia), em detrimento do conhecimento do que participa do devir, sendo este objeto de conhecimento do sujeito pautado no princípio de razão.
Isso posto, perceba-se a diferença cabal em Platão e Schopenhauer no que tange a importância epistemológica da razão e, ainda mais, na conceituação mesma da arte. É bem verdade que para ambos este mundo efetivo propriamente não tem o seu ser, mas apenas é fenômeno de uma manifestação outra, superior. Entretanto, o veredicto de Roderick só se sustenta se, por um lado pensar-se a arte como aniquilação do efetivo, assim sendo, platonicamente, e por outro, como superação ontológica desse mesmo efetivo posto em aniquilação. E qual dialética impossível efetivamente.
Verdade é que a arte nunca conseguirá esgotar o real, uma vez que esta nunca conseguirá, por mais realista que seja, representar todas as nuances que se passam na efetividade e, problema maior ainda, nunca dará conta da questão do fluxo, mesmo que essa arte seja o cinema. Mais cedo ou mais tarde uma descrição sempre cessa, e o mundo continua em seu devir. A arte, como bem lembra Camus, só poderá trabalhar com recortes de vida e, neste, dependendo do tratamento que dê, poderá esgotar mais ou menos o real. Contudo, uma abordagem ou um ponto de vista já é uma escolha castradora da multiplicidade de possibilidade que se oferece na efetividade. É, por assim dizer de maneira nietzscheana, perspectiva. E, por se tratar de Nietzsche, perceba-se o fragmento 298 de "A Vontade de Poder": “- Arte, conhecimento e moral são meios: em vez de reconhecer neles a intenção de incremento da vida, levaram-nos a uma relação de oposição com a vida, a “Deus”, - a algo assim como manifestações de um mundo superior, que desponta ocasionalmente por meio deste”. Donde se rechaça a concepção schopenhauriana desse lugar elevado que se dá à arte, que acaba por tratar de algo que não se pode auferir, uma vez que à coisa-em-si só se chega pela intuição desinteressada e a qual resulta numa experiência vazia, para a qual é necessária a formulação do conceito de gênio ao qual se tem que alçar, como fosse quase que uma graça; e o próprio instante genial também é uma experiência muda.
Portanto, prenda-se nisso: “reconhecer neles a intenção de incremento da vida”. Ou seja, perceber na arte, na criação, a pulsão da vontade de vida, ou de poder, para citar o termo nietzscheano. Donde se perceba que a própria criação artística já é ela mesma uma ação do mundo efetivo, e, portanto, tem o seu lugar na efetividade. Ademais, que o próprio objeto criado já é ele mesmo efetivo, portanto já faz parte do real. É ele mesmo, seja a representação de algo existente um pouco mais ou um pouco menos, ou seja ele uma criação dita abstrata (embora essa conserve ainda algo do mundo efetivo), já um objeto da realidade, que, uma vez criado tem sua existência dentre os demais objetos de consideração e representação no mundo efetivo.
Assim, o objeto da criação artística, uma vez produto de uma ação humana efetiva dada na realidade, neste mundo, tem o seu lugar aqui, tem sua condição ontológica salvaguardada, partindo do real, é verdade, mas pondo-se também à parte deste quando concluída a sua realização. É mais um outro dado do mundo efetivo, tendo neste a sua manifestação e expressão próprias.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Hopper pintor do vazio: o penúltimo pintor visual


Antes de tudo esclareça-se o título, o qual parafraseia o capítulo “Godard pintor: o penúltimo artista”, de “O olho interminável” de Jaques Aumont, no qual o crítico francês trata da dificuldade de filmar no cinema depois de 1980; esta obra de Aumont será importante aqui, mas não neste tocante. Ainda nela o autor fala de uma tentação de se ler a história da pintura a partir da mudança da pintura tátil para a pintura visual. É o que faz Ortega y Gasset em “Sobre o ponto de vista nas artes”, por sua vez versando sobre a mudança entre o que chama de pintura próxima e pintura distante. E nesta leitura de câmbio pictórico é que se sustentará o presente texto para que se chegue ao pretendido.
Deste modo, Ortega y Gasset começa a sua leitura a partir do Quatrocento, o qual é eminentemente tátil, ou próximo – o afresco e retrato romanos, bem como a pintura bizantina e a Idade Medieval média não o serão, dada a impossibilidade da representação da terceira dimensão, ganho pictórico o qual se inicia com Giotto, Masaccio, Fra Angelico, entre outros, no referido período inicial tratado pelo filósofo espanhol. Mesmo assim, esses artistas pintavam cada objeto como se fosse único, da forma que cada representação se mantém próxima do observador, de maneira que todos os objetos pintados são táteis, i. é, tem em si tal corporiedade que pensa-se poder tocá-lo. Isso contribui para o passeio do olhar do expectador pela superfície da obra, o que acaba não lha concedendo unidade sistêmica.
No Cinquecento, por exemplo com Rafael, ganha-se em questão de univade da obra. Embora ela ainda seja tátil, a construção, ou o que Ortega y Gasset chama de arquitetura da obra, consegue impedir que o olhar vagueie pela superfície pintada, concedendo-lhe, assim, mais sobriedade. No entanto, maior ganho neste sentido obtém-se na perspectiva atmosférica de Leonardo e a vindoura noção de flou da obra, o que, se não concede uma unidade arquitetônica à pintura, acaba por suplantar a característica tátil de alguns dos objetos representados, e, assim, preparando uma pintura com características mais visuais e distantes, em contraposição ao caráter tátil e próximo.
Ainda para Ortega y Gasset a primeira forma puramente pictórica que concede unidade ao quadro consiste na técnica do claro-escuro: a unidade de leitura se dá pelo elemento da luz, onde os pontos luminosos da pintura fazem a leitura integral da obra por um viés puramente sensorial (visual) e não mais de ordem racional (como a perspectiva geométrica e a noção de arquitetura). Contudo, para o autor espanhol, isso é menos uma atitude de ponto de vista do pintor do que uma técnica unificadora. É um passo para o distanciamento da visão, mas ainda é possível o passear do olhar pelos pontos luminosos na superfície da pintura.
Um parêntese. Para Ortega y Gasset, e mesmo seja verdade, El Greco, neste sentido, consiste num retrocesso, pois sua pintura é eminentemente tátil, e sua possível modernidade se consistiria não mais do que a sua paleta, tão afeita à limitação de cor de alguns quadros cubistas, como bem nota Modigliani acerca destes. Por sua vez, Tintoretto ganha em profundidade, por mais que seja tátil, dado o uso inaudito que faz da perspectiva: por vezes acentuadíssimas, por vezes mais de uma numa mesma pintura, quando não ambos os princípios juntos. Contudo, pintor de transição, maneirista, não leva a cabo o câmbio.

A mudança da pintura próxima para a distante, ou ainda da pintura tátil para a visual se dá com Velázquez, como atesta Ortega y Gasset e corrobora Aumont. A qual se constitui na fixidez do olhar por parte do artista. Desta feita, fixando-se o olhar do pintor, os objetos a serem representado “vão em direção a este”, e não o contrário, de maneira que o olhar não passeará jamais. Distante porque os objetos já não estão mais próximos do observador, portanto, perdem o caráter tátil, que tem que ver com a pintura próxima. Assim, em vez da pintura distante ser tátil, ela é visual: não se tem a tentação de tocar os objetos pintados, apenas de pode vê-los. Velázquez se constitui na fixação do ponto de vista do pintor, e, portanto, do observador; representa o que o autor espanhol chama de pintura do oco. Acerca disso uma última consideração paradoxal: o ponto de vista distante é mais próximo do olho, dado o retraimento da retina (tenha em mente a clássica pose do artista na obra “As meninas”).
Adiante, essa mudança no olhar do pintor tem novo capítulo no impressionismo, onde a visão continua se aproximando do olho, chagando aqui a tocar o próprio globo ocular, como percebe Ortega y Gasset. Ainda segundo o filósofo espanhol, o que se passa na pintura impressionista é a pintura do próprio ver, do ato mesmo de enxergar. Assim sendo, não será uma pintura tátil, por mais que se percebam manchas de cor soltarem da tela. Acontece que, dada a preocupação de pintar a luz sob os objetos, até descaracterizá-los, acaba impossibilitando o caráter tátil possível da pintura. E, dada a contínua mudança do ponto de vista, desta vez chocando-se com o próprio olho,a pintura impressionista acaba por trazer todos os objetos representados a partir de sua luz para “fora” do quadro em direção ao observador, o que não concede o caráter visual à pintura impressionista, uma vez que não é possível a pintura de oco. Tem-se ainda no impressionismo a manutenção do flou e de certas características da perspectiva atmosférica, notadamente a questão de tonalidade em relação a presença do ar em torno do objeto representado. Assim, por vezes pode-se perceber uma característica tátil, por vezes visual, a depender da construção do quadro, mas nunca absolutamente: Manet, por exemplo, será mais tátil; Monet, por sua vez, mais visual. As paisagens de Van Gogh e Cézanne talvez sejam ambos, concentrando como nunca a questão de superfície e profundidade na pintura (não é por acaso que Merleau-Ponty encontra em Cézanne o leitmotiv para essas questões).
As vanguardas, de acordo ainda com Ortega y Gasset ultrapassam a barreira ocular e passam a pintar o que o filósofo espanhol chama de “intra-subjetivo”. Desta feita passa-se da pintura do objeto para o ponto de vista do sujeito, desta para a representação do próprio ato de ver até o interior do pintor. Diz ainda o autor que os pintores de vanguardas são “criadores de irrealidade”. Portanto, basta observar, visuais estas pinturas nunca serão, pois não há a centralização do ponto de vista do pintor. Ter-se-ia aqui algo mais que ver com perspectivismo, no sentido filosófico. Serão, quando se reconhecer algum vestígio de natureza, pinturas no máximo táteis.
Entretanto, Edward Hopper, pintor americano, consegue romper uma possível impossibilidade da pintura visual. Artista de difícil classificação, se é que há uma. Começa com preocupações impressionista, como atesta a fase européia, e a questão da luz sempre será importante em sua obra. Por vezes é considerado integrante da american scene, embora os pintores desse movimento se valham muito da ironia e Hopper vai muito além disso. Não é propriamente realista, uma vez que afirma, com Degas, o valor da memória e imaginação ao representar uma cena. E também alguns de seus “enquadramentos” ou “perspectivas” podem remeter ao pintor das bailarinas. Nunca poderá ser hiper-realista ou pop como serão Chuck Close, David Hockney ou Warhol, por mais que elementos caros a esses artistas estejam já em sua obra, como as propagandas.
A obra de Hopper se principia sempre contendo expressões da natureza e expressões da civilização lado a lado, como já atesta a fase européia. Contudo, quando o artista passa a pintar os temas americanos isso se acentua, e o primeiro grande motivo então passa a ser o limite entre natureza a civilização; e, no mais das vezes, é uma muda afirmação da civilização ante uma natureza que a circula e se mantém intransponível por vezes: sempre casas solitárias, linhas férreas o estradas. Como que representasse uma consciência ante o deserto, sendo a civilização a consciência e a natureza o intocado: a prostração ante o vazio em seu primeiro viés. Nesses temas Hopper por vezes é tátil, por vezes visual, tudo dependendo do ângulo, da perspectiva adotada.
Hopper chega aos quadros de civilização pura. Sempre com perspectivas inauditas, pouco aparece figuras humanas: quando aparecem mais de uma ,estão perdidas; quando apenas uma, esta está desolada. Ao cabo, as marcas da civilização se sobressaem ao próprio homem, apequenando-o. Dir-se-ia alienando-o, e eis mais outra característica da obra de Hopper: a alienação, ou melhor, o estranhamento do homem, tal é a situação na qual ele é colocado (não se pense no estranhamento no sentido marxista, em que o homem é estranhado da realização de sua essência enquanto trabalho: estranhamento de si consigo mesmo e logo mais se chegará à alteridade). Ademais, aqui o artista americano sempre será visual: nunca se poderá tocar nada, ou seja, trazer o objeto representado para si, a obra, por fim, mais perto de si: é o estranhamento do observador: não há catarse: outro viés do vazio.
Por fim, estabelecida a civilização, Hopper concebe grupos de pessoas, o que não pressupões qualquer comunicação entra elas; pelo contrário: não há qualquer manifestação entre as pessoas representadas dentro do quadro. Todos olham ou agem em direções diferentes: não há qualquer manifestação de relação, ligação entre elas; ou seja, não há amor, caso se fique mais uma vez com Ortega y Gasset, agora em “Meditações do Quixote”. Eis mais uma representação do vazio.
Contudo, o que possibilita a representação do vazio e a pintura visual em Hopper, por mais que a sua preocupação seja a luz, é a escolha da perspectiva. A perspectiva em Hopper é sempre inaudita, e, diga-se, tem muito mais que ver com enquadramento de cinema do que uma mise en scéne plástica clássica. Ademais, entre a dicotomia da pintura e do cinema, onde aquela se preocupa com a representação de um instante pregnante e esta com o fluxo do movimento da ação, por mais que a escolha do a ser filmado seja uma escolha de um fluxo pregnante, Hopper carrega esta idéia de instante grávido que fora perdido na pintura de vanguarda. Contudo, ao tomá-lo a partir de certas da perspectivas de cinema (geralmente planos gerais ou médios ou plongée), ele quebra a aura de significação latente do instante grávido de algo importante para torná-lo banal, e, assim, vazio. Os personagens sempre são vistos de maneira e não se comunicarem, o que quebra a “gravidez comunicativa” do instante. O instante pregnante de Hopper é o instante do vazio. E toda essa, agora sim, mise en scéne à moda moderna, a qual represente o vazio, só é possível através da pintura distante, da pintura visual. Dada a pintura tátil, haveria comunicação, se não entre os personagens, pelo menos com o observador, enquanto catarse. Mas essa não é possível graças ao tratamento alienante que paulatinamente Hopper vai executando, o que só é possível na pintura visual.
Hopper nunca reconciliará. Eis o penúltimo pintor visual: eis o pintor do vazio.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Marcel Duchamp: atividade e intranscendência


Em “A desumanização da arte”, Ortega y Gasset coloca que a arte jovem (neste tocante se refere ao cubismo e expressionismo) tem por primeira característica tratar o objeto a ser representado da maneira menos humana possível, e daí o título do ensaio. Ainda diz o filósofo espanhol que se trata de uma arte artística, uma vez que causava estranhamento ao público de então (o texto é de 1924), o qual ainda não tinha, digamos assim, uma educação visual para compreender ou assimilar aquela estética que se anunciava. Entretanto, das características dessas vanguardas a mais importante vem a ser a intranscendência desta arte, auferida através de um influência negativa da arte romântica, a qual pretendia solucionar o mundo através da fruição estética (neste sentido veja-se Schopenhauer, por exemplo). É bem verdade que, se ficarmos com Amy Dempsey, a partir de 1918, temos a busca de uma nova ordem e, portanto, uma vanguarda como o surrealismo não pode compartilhar deste valor intranscendente.
Mas volte-s algo antes e teremos a intranscendência na arte por excelência: o dadaísmo. Desde o seu batizado, ao se escolher um nome que nada quer significar, já se apreender o espírito deste movimento: eles aspiram a nada significar. Isto se percebe na poesia de recorte e colagem de jornal, por exemplo. Contudo, a grande expressão do movimento vem a ser o francês Marcel Duchamp e, mais especificamente o advento do ready made. Ora, ao estabelecer que um objeto já fabricado – como um mictório, o primeiro ready made – tem status artístico, Duchamp consegue erradicar toda e qualquer transcendência na arte: já não é mais uma arte que pretende revelar verdade, representar a natureza, ou, sequer, arte pela arte. É o próprio cheque desta. E mesmo isso seja sintomático, como se perceberá adiante. Nunca antes se pensou um rebaixamento tão grande em relação à arte. E também não seja por acaso que depois do Dada passa-se para a busca de uma nova ordem, busca da qual fizeram parte artistas dadaístas, os quais desembocaram no surrealismo. Contudo, examine-se anteriormente, e mais de perto o legado artístico de Duchamp para que, desta forma, encontra-se esse elogio da intranscendência na arte.
Pode-se dizer que, segundo algumas considerações filosóficas, a primeira grande afirmação da intranscendência da arte, em Duchamp, se dá no quadro cubo-futurista “Nu descendo a escada”, ao, não só o artista representar o fato pretendido de maneira pouco humana como, também, conseguir representar o devir como nunca dantes. Ora, vem a ser o devir a pura realidade constante do mundo, sem qualquer ordem superior que estabeleça uma unidade, uma fixidez. Percebe-se então, no referido quadro, a primeira representação integral do devir, do fluxo (sobre este ponto veja-se “O ‘Nu descendo a escada’, de Duchamp: o problema do fluxo na pintura”); e, desta feita, a primeira representação da intranscendência em Duchamp.
A seguir, têm-se as pinturas dos moedores e dos moldes metálicos e também a concepção da “Noiva”, os quais irão formar, em conjunto, “O grande vidro, ou, a Noiva despida por seus celibatários, mesmo”, onde, plasticamente, pois ainda se trata de pintura, a desumanização chega ao auge, pois representa figuras humanas sem qualquer traço humano, quase uma pura abstração: nenhum traço humano é concebido. E, quando se tem em mente que para a completude da obra (que durou cerca de dez anos) Duchamp fez uso de uma rachadura no vidro, devido a uma queda, o artista incorpora definitivamente o devir, ou melhor, o acaso, desta feita no próprio fazer artístico. Tem-se assim outro viés da intranscendência da arte.
E então Duchamp chega aos ready madies: um dos maiores passos para a intranscendência da arte. Como já foi explicitado anteriormente, aqui o artista francês rebaixa a arte ao ponto que, sequer a técnica se configura como fim em si ou condição necessária para a produção artística; e, desta feita, se desvela o pressuposto para a arte conceitual. Marca também o uso inaudito da técnica reprodutiva na arte: nem fotografia e nem cinema, mas, a apropriação de objetos industrializados tomados para o próprio questionamento e fazer artísticos. Outra faceta da intranscendência.
Estabelecido já Duchamp no epicentro artístico, este passa, então, a dedicar-se ao projeto dos museus-valise, os quais comportam reproduções menores de suas principais obras; e, atividade a qual o artista se dedicará daí em diante, uma vez que o trabalho a ser feito em relação ao questionamento e fazer artístico já fora terminado. Tem-se, então, mais uma utilização da reprodutibilidade técnica, desta feita concernente a reprodução em série, a qual castra definitivamente o conceito de aura, como expõe Walter Benjamim em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, e, portanto, escamoteando o valor de culto do objeto de fruição estética. Esta se configura uma quarta manifestação da intranscendência da arte no artista francês.
Após o advento do museu-valise, Duchamp pouco cria artisticamente. Pense-se que a função por ele estabelecida a si mesmo fora cumprida. Destarte, ele passa a se dedicar às reproduções dos museus-valise e, fora isto, quase abandona a arte para jogar xadrez. O que faz no âmbito artístico não ajuste em “O grande vidro”, além de produções esporádicas, das quais a mais importante vem a ser a instalação “Dados: 1° a queda d’água, 2° a lâmpada de gás”; e também mencione-se a personagem travestida “Rose Selávy”, nas quais o artista antecipa as tendências contemporâneas. Nisso tudo ainda é possível enxergar mais um viés intranscendente da arte, o qual vem a ser a tomada de consciência de que a arte não é uma instancia superior a qualquer outra e que, assim sendo, a atividade artística não é mais ou menos importante do que as demais. Isso se pode perceber nas considerações que Albert Camus faz acerca da “Arte Absurda” em seu ensaio “O mito de Sísifo”. Assim, negado o valor superior e, por que não dizer? transcendental da arte, tem-se mais outra faceta da intranscendência da arte em Duchamp.
No mais, o que sempre parece subsistir em Duchamp é uma consciência da necessidade de certa atividade para a própria manutenção da consciência do que se passa.

Apêndice: em torno de “Dados: 1° a queda d’água, 2° a lâmpada de gás”.

Caso se force ainda uma leitura em torno de “Dados: 1° a queda d’água, 2° a lâmpada de gás”, pode-se perceber mais uma característica, talvez a última. Retome-se a idéia de quebra de culto, de Walter Benjamim, no já referido texto: a noção de quebra do valor de culto se dá pelo fato da reprodução técnica da obra, que tira o seu caráter de autenticidade e de aura, ao contrário do que acontece na fruição de um quadro dentro de um museu, quando se tem a possibilidade de culto de um objeto estético. Contudo, para a percepção da perda de culto da referida obra de Duchamp é preciso que se pense em outra forma de observação. A instalação se constitui num cômodo, onde está deitado o manequim de uma mulher despedida e com as pernas abertas, tendo ao fundo uma paisagem algo irreal, que contém o flou da paisagem às costas da Mona Lisa. Contudo, tal visão só é possível através de dois buracos que contém a porta a qual daria acesso a esse cômodo. Assim, o que o espectador faz é “espiar” a obra; ou, o espectador torna-se um voyeur. E é justamente essa característica de voyeurismo que impossibilita o valor de culto na referida obra. Destarte, tem-se a última expressão da intranscendência da arte em Marcel Duchamp.

sábado, 28 de junho de 2008

Acerca da Trilogia do Silêncio, de Ingmar Bergman.


A Trilogia do Silêncio, composta por Através de um espelho (1961), Luz de inverno (1962) e O silêncio (1963), talvez se constitua no eixo de mudança das preocupações temáticas do cineasta sueco. Sabe-se que, pelo menos desde O sétimo selo, as suas preocupações são de ordem metafísicas, notadamente a questão do fenecimento, da morte, e digressões entorno da natureza divina. E é justamente na referida trilogia que se tem a acentuação desses temas nas películas de Bergman, ainda que de forma meio imbricada e, pode-se dizer, com certa carência de linearidade.
Em Através de um espelho temos a história de uma família, especificadamente, um pai escritor, seu filho adolescente, sua filha doente e o marido desta. Dada a enfermidade da moça, castra-se a sexualidade do casal, a que o marido (vivido por Max von Sydow) tolera pacientemente. Entretanto, a enferma fica constantemente realizando jogos sexuais com seu irmão – e a cena em que este derrama um balde de leite não é despropositada. Assim, enquanto brinca sexualmente com seu irmão, rejeita o marido – e talvez não seja por acaso a escolha de Max von Sydow para o papel, uma vez que todos os personagens que este trabalhou com Bergman têm característica de sempre cumprir o seu dever; e ele cumpre o dever do marido negado e paciente com a doença de sua mulher.
E, no tocante à doença dela, o que o pai faz, como escritor que é, é justamente anotar, passo a passo, o progresso da enfermidade de sua filha. Ao saber disto, o seu genro procura entender o que se passa na cabeça de seu sogro que, como pai, pouco se preocupa com sua filha e todo o interesse vertido nela por ele é de ordem literária. A discussão entre os dois termina na negação de Deus por parte do pai. E, uma vez dada a negação de Deus, a aposta do pai para uma explicação e, talvez, mesmo uma justificativa, é o amor. Ao cabo da película, a filha, num momento de epifania, vê Deus na figura de uma aranha, e, logo mais, vai interna.
Em Luz de inverno a temática metafísica é abordada através do suicídio. Desta feita, o personagem de Max von Sydow, ao saber que a China tem a bomba nuclear chega, pode-se dizer, a constatação do absurdo da existência. Desta maneira o referido personagem vai a procura do pastor para ser consolado, por assim dizer. Acontece que o próprio pastor perdeu a fé, e, portanto, sua ajuda se mostra vazia: eis uma das formas nas quais de pode reconhecer o silêncio.
O personagem de Max von Sydow por fim comete suicídio, dada a impossibilidade de ajuda, mesmo comunicação entre si e o pastor. Ademais, este mesmo reconhece sua perca da fé ao dizer que Deus está silencioso: outro viés do mesmo tema. Ora, o pastor acreditava numa relação muito particular sua com Deus: um entendimento perfeito e abstrato o qual cai por terra dada a morte de sua mulher. Tudo se passa como se ante os desastres terrenos a divindade seja muda. Em adendo, cabe notar que este pastor acredita em um Deus-aranha, o que remete à epifania gozada pela personagem de Através de um espelho. O que vem a ser esse deus-aracnídeo pouco se sabe.
Ainda em Luz de inverno tem-se o conturbado relacionamento entre o pastor e uma professora local. Esta ama aquele, que a odeia. Assim sendo, estabelece-se uma relação amorosa que não dá em nada, fadada ao fracasso, o que já se poderia perceber na primeira película da trilogia. Portanto, mais uma vez o amor se mostra silencioso. Neste tocante é importante notar que a aversão a qual o pastor tem pela professora se inicia quando esta lhe mostra as chagas as quais possui. Ou seja, a qualquer aberração corpórea o amor pode se apagar. Destarte, a característica sublime e possivelmente redentora deste se mostra castrada por um simples evento carnal.
Já em O silêncio temos a radicalidade de todo o tema. Aqui, sequer os problemas metafísicos são colocados: parte-se do dado concreto das relações humanas e as preocupações acerca desta. Eis então a viravolta na temática de Bergman, a qual vai paulatinamente se deslocando da ordem metafísica para a ordem dos relacionamentos. Tem-se, desta feita, duas irmãs e o filho de uma delas, viajando de trem até que são obrigados a parar em uma cidade estranha. No próprio comboio já se percebe o distanciamento entre as duas irmãs e desta em relação à criança, que brinca sozinha no corredor.
Ao chegar à cidade estranha, da qual nada se conhece, nem mesmo a língua (e isso é capital), se instalam em um hotel, ocupando um aparelho com duas câmaras distintas e ligadas entre si. A criança sai em peregrinação solitária pelo hotel até que encontra um grupo de anões circenses, com os quais começa a se entreter, a manter relações amistosas. Contudo, sua mãe acaba por descobrir o seu paradeiro e, por fim, leva-o embora de sua satisfação lúdica. A criança dá banho em sua mãe e depois esta sai, deixando-a com a tia, que está doente. Dado um certo momento o serviço de quarto se apresente e a comunicação se mostra deficitária. Entretanto, depois, a criança consegue se entender parcialmente com o criado.
Enquanto isso, a mãe vai sozinha a um café, onde flerta com um rapaz e, depois disto, termina em um teatro, onde se vê voyeur de uma relação sexual a qual acontece a sua frente. Narra o fato a sua irmã e depois têm qualquer discussão. A mãe então parte para um encontro amoroso com um homem que havia conhecido na ocasião da ida ao café. O próprio ato sexual se mostra complicado, e, ao cabo deste, sua está à espreita, atrás da porta. No final do filme, a mãe parte com a criança, deixando sua irmã doente convalescendo aos cuidados de outrem. Esta entrega a seu sobrinho uma relação de palavras da língua estrangeira e suas respectivas traduções. Não por acaso ela é tradutora: eis a exposição que mesmo com o conhecimento de várias línguas a torre de Babel se estabelece. A comunicação ou é impossível ou é inútil, e, destarte, manifesta-se o silêncio.
Agora, um parêntese. Ortega y Gasset, partindo de Spinoza e seu amor intellectualis, define a filosofia com ciência do amor, em seu primeiro livro, Meditações do Quixote. Ainda, estabelece o filósofo espanhol que o amor é, digamos, esse desejo de construir relações entre as coisas; e, isso pode se dar tanto no âmbito intelectual, ao, em filosofia, querer-se construir relações entre coisas e fenômenos para poder explicá-los, como também, logicamente, no tocante humano, no que tem que ver com o homem e suas relações com os outros. O ódio, em contraposição, se dá pela não relação entre as coisas, entre as pessoas, portanto.
Estabelecida essa digressão filosófica e, dada a impossibilidade de resolução das questões metafísicas no âmbito divino, uma vez que Deus está silencioso, também se transparece como fracassada a aposta no amor, nas relações humanas como forma de sanar os problemas existenciais, uma vez que também a comunicação dos homens entre si se mostra inútil, deficitária, e, desta feita, castra-se a possibilidade de relação satisfatória entre eles, e, portanto, o sucesso do amor em responder essas questões. Mesmo o que subsiste demonstrado em toda a trilogia seja um ódio entre os personagens; ou seja, a impossibilidade de relação entre eles. Ao cabo de tudo, fica-se com um inconsolável solidão.