quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Modigliani escultor.


Modigliani foi o pintor trágico por excelência da Paris efervescente do início do século passado. E talvez essa tragicidade, ao mesmo tempo que gera mais aproximação em relação ao artista, pode contribuir para obscurecer aspectos de sua obra: é o que se passa no filme estrelado pó Andy Garcia. Deixe-se então de lado o mito, uma vez que ao se trata de ética, e parta-se para a sua obra. As primeiras pinturas de Modigliani pouco têm que ver com as quais o consagrará. Contudo, toda a sua produção, por mais que se divirja, cabe dentro do universo pictórico pós-impressionista. E fato é que o artista italiano não se enquadra em nenhum dos movimentos que esbanjavam naquela época; como ele, muitos outros, a exemplo de Soutine e Utrilo, amigos seus, bem como Chagall e Van Dogen, para citar alguns do que é conhecido como Escola de Paris: como esses artistas expatriados não aderiram a movimento algum, mas todos viviam em Paris, deu-se essa denominação. E, por lá viver, Modigliani acaba por sofrer algumas influências comuns entre os artistas da época, como é o caso da absorção da escultura africana recém-descoberta, a qual contribui necessariamente para o cubismo sintético. Contudo, como se verá, as demais influências do artista diferem das dos demais.
Modigliani carrega sempre consigo grande influência da arte italiana, uma vez que fora educado na Itália, e mais precisamente, na fruição das obras da antiga sede das belas artes. Entretanto, nas primeiras pinturas pouco se percebe isso, mas, antes, muito de pós-impressionismo, dado o ciclo no qual conviveu em seu país de origem. A guinada artística decisiva para o italiano se dá pelo conhecimento de Brancusi e sua escultura. Ao tomar contato com este, aquela abandona a pintura e passa a se dedicar à escultura, e aí se inserem os estudos das cariátides, as quais representam a primeira vinculação de Modigliani à tradição da antiguidade. Ademais, os seus desenhos de cariátides já revelam a dívida com Brancusi e com a escultura africana. No entanto, devido a problemas de saúde, Modigliani consegue suportar o pó extraído das pedras que esculpia, e, assim, tem que abandonar a escultura. E, uma vez deixada de lado essa forma artística, ele irá se dedicar novamente à pintura. Pode-se estranhar tratar de um Modigliani escultor quando o artista tão pouco produziu nesta ceara; e mesmo se tratará mais aqui de pintura. Acontece que apenas pelo contato com a escultura é que se dará o futuro Modigliani e toda a sua contribuição para a pintura.
O contato do artista italiano com Brancusi e a escultura negra, o que direcionava o seu próprio esculpir, é fundamental no tratamento do rosto na pintura, o qual advirá de suas cabeças de pedra. E, desta maneira, ter-se-ão os rostos alongados, os olhos em elipses, os narizes e bocas bem marcados. Contudo, isso é pouco para diferenciar Modigliani do cubismo ou do expressionismo, onde, por vezes, têm-se disposições faciais semelhantes; aqui entram em cena mais influências do artista as quais não foram aproveitadas pelos demais pintores na representação humana. Sim, pois, para “o nosso aristocrata” tratava-se quase que exclusivamente de pintar figuras humanas; e, neste sentido, ainda pode ser percebida outra diferença entre os “membros” da Escola de Paris em relação a seus contemporâneos. Assim, ainda se tem outra marca do esculpir na pintura de Modigliani, qual seja, a noção de volume, a qual será fundamental para os seus nus, os quais diferem bastante das representações de nus de seus contemporâneos justamente pelo volume que o artista italiano consegue imprimir a ele, sem mencionar na carnalidade que ele exalam, do que se falará mais tarde.
No percurso de seus estudos e influências italianas, Botticelli se estabelece como marca fundamental na concepção e estilização das figuras humanas daquele artista trágico. Notadamente “O nascimento da Vênus”, do pintor proto-renascentista é capital para a suavidade e sensualidade que Modigliani colocará em seus quadros. Não por acaso que ele era tratado como um “Botticelli moderno”. E o próprio Botticelli tem o seu que de modernidade ao alongar o pescoço e abaixar os ombros de sua Vênus para poder suavizá-la. E, assim, percebe-se de onde Modigliani extrai como seu estilo os pescoços longos e os ombros caídos, bem como o rosto ovalado e esticado, advindos tanto do pintor da Vênus como da escultura negra. Ademais, o diálogo de Modigliani com a tradição pictórica não pára aí, não se restringindo a arte italiana; tem-se ainda leituras de Goya, Ingres e Manet. Ou seja, a sua educação para o tratamento do corpo depende mais da tradição do que da efervescência das vanguardas.
Por fim, a última e decisiva influência de Modigliani é a escultura greco-romana, ou pelo menos o que se ficou dela, mais precisamente no que se refere ao olho. Exatamente o tratamento dispensado aos olhos pela escultura clássica antiga, i.é., a representação dos olhos sem pupila, mas como único contínuo, onde não se expressa nada, será decisivo utilizado pelo artista italiano. É bem verdade que, pelo menos na escultura grega tinha-se o uso de pedras coloridas para a representação do globo ocular. Conduto, essas peças se perderam e o que restou foram aquelas nas quais a superfície do olhar é tratada como uma única, contínua e vazia superfície, a qual não se sabe para onde olha. Excetuado-se a mudança da cor do rosto e do olho, é isso o que faz Modigliani ao pintar tudo aquilo que poderia ser considerado “olhar” com uma única cor, retomando aquela tradição escultórica na qual se dá o instante kierkegaardiano. Este, a saber, consiste na possibilidade de eternidade na temporalidade, e o filósofo dinamarquês encontra uma representação do instante naquele tipo de escultura, como se vê no “Conceito de angústia”. Assim, Modigliani devolve à arte a noção de instante, quiçá não pregnante, como fala Aumont a respeito da pintura clássica, mas, quem sabe, um instante de vazio, como se pode perceber em Hopper de maneira diferente. A própria condição de eternidade é quase que interente a arte; e aí, pode-se falar com Kierkegaard: é uma eternidade no temporal, ou, um efêmero eternizado.
A partir de tudo o que foi posto, Modigliani consegue resgatar duas noções para a arte de vanguarda as quais pareciam estarem perdidas. A primeira vem em negação a Ortega y Gasset e sua desumanização da arte: se cubista e expressionistas contribuíram para o tratamento da figura humana de maneira não humana, Modigliani, assim como alguns dos “membros” da Escola de Paris, começam por reconstituir as características humanas na pintura, por mais que ainda façam uso de algumas mesmas influências que aqueles artistas. A segunda terá que ver com o volume, suavidade e sensualidade que o artista italiano imprime em suas peças: Modigliani resgata a carnalidade perdida na pintura, e, aqui, tem-se que ser extremamente camusiano na exigência de um “suporte de carne” para a criação artística ou filosófica. Assim sendo, não se tem mais aqueles “criadores de irrealidades” dos quais falava Ortega y Gasset a despeito do cubismo e do expressionismo. E, se esses para o filósofo espanhol são artistas intrascendentes, com Modigliani desce-se um nível a mais na escala da imanência e chega-se a própria carnalidade, mais das vezes sensual. Ora, toda essa guinada pictórica feita por Modigliani só é possível quando da guinada do Modigliani escultor.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A propósito de “O Mistério de Picasso”, de Clouzot.


Como trata Ortega y Gasset em sua revisão da história da arte a partir do ponto de vista do pintor, os cubistas seriam “criadores de irrealidades”, uma vez que o ponto de vista vai se retraindo até romper a barreira ocular, chegando ao que o filósofo chama de intra-subjetivo. Isto fica posto no ensaio “Sobre o ponto de vista na arte”. No texto maduro e convergente de algumas idéias encontradas no referido ensaio, ou seja, em “A desumanização da arte”, o autor coloca que a arte jovem, a arte de vanguarda, é uma arte artística, uma arte para artistas, devido necessariamente a esse ponto de vista intra-subjetivo, o qual cria irrealidades. Contudo, veja-se se é isso o que se passa quando da apreciação do filme “O Mistério de Picasso”, de Henri-Georges Clouzot. Na referida película vê-se o artista espanhol em work in progress, como era de seu feitio se apresentar. Para tanto se fez necessária a utilização de material especial para que as obras pudessem ser capturadas pela câmera. Mas volte-se à questão a qual inicia o texto.
As obras apresentadas por Clouzot pouco têm que ver com o cubismo analítico, o qual se propunha a oferecer de uma só vez todos os lados de um objeto, daí a sua natureza de recorte e de composição de ontologias regionais, para citar um termo husserliano bastante aparentado. A exceção das pinturas em preto e branco, nas quais se pode perceber de uma só tacada a fronte e o perfil de um mesmo rosto. Tem-se, por seu turno, expressões do cubismo sintético, o qual parte tanto do problema principal da pintura de Cézanne quanto da escultura africana para a estilização da representação humana. E eis por que Ortega y Gasset trata a arte de vanguarda como desumana; ela pretende fugir de uma representação que pinte o homem como ele aparece, como se dá na realidade. Nesse sentido para ter razão o filósofo espanhol em falar de uma criação de irrealidades; no mínimo, uma arte que busca prescindir algo do real, até chegar à radicalização com a pintura abstrata. Entretanto, faça-se um parêntese e se volte ao filme.
Narra Clouzot o quão bom seria caso se pudesse apreender a criação de um Rimbaud ou de um Mozart. E é isso que ele pretende e mostra em seu filme, salientando que a pintura seria uma arte mais própria para tanto. Contudo, a noção decisiva para a análise sem a ser a do erro. Fala ainda o diretor que se poderá perceber esse olhar no escuro da branca tela a partir do qual o pintor constrói a sua obra. Chega quase a ser um leitura mais afeita à escultura, como se o ser pintado já residisse na virgem superfície; antes a pintura trabalha com a adição, em vez da subtração, como na escultura em mármore: desta feita, é mais próxima de Giacometti do que de Michelangelo. A possibilidade do erro, ainda mais na construção por adição, demonstra o caráter de devir da criação artística. Assim sendo, embora já se tenha em mente algo acabado o qual se quer produzir, a própria natureza da obra, por assim dizer, exige alterações no imaginado para que se alcance uma realização cabal. É fundamental quando Picasso de que está satisfeito ou insatisfeito com o que estava a fazer. Demonstra a própria fluidez do ato artístico enquanto atualização. Embora a obra acaba possa carregar uma noção de momento apoteótico, como trata Nietzsche, apolíneo em sua “necessidade” de assim o ser, apreende-se a noção de devir na própria criação. Esta, portanto, faz parte do real nisso em que, nos termos metafísicos, vem-a-ser. Ou seja, sendo o devir componente indiscutível do real, da natureza, tem-se, então, na fluidez da criação artística a sua pertinência e afirmação, até certo ponto, do real. Contudo, uma representação, seja ela artística ou não, nunca esgotará a vida, pois, para isso, seria necessário que ela tivesse e chegasse a um fim, o qual seria estabelecido. Tem-se, assim, do qual fala Camus como umas das possibilidades de se dar a arte.
Entretanto, perceba-se ainda outro momento do filme, qual seja, a última obra criada por Picasso. Nela, o artista espanhol começa pintando algo bastante diferente daquilo que deixará por final. E não se trata aqui da alteração de uma cor, uma luz, um efeito que viesse a calhar melhor na representação do ideado, o que faria parte do “erro”. A questão que se passa é a mudança na própria temática, do próprio representado que vai mudando seguidamente com progress of the work. Não vem nem a ser a mudança de uma representação clássica para uma cubista, como acontece na peça do touro chifrando o toureiro. É a mudança de uma mulher de biquíni na praia para um casal, e desta para uma mulher sozinha... Trata-se da fluidez, do devir permanente da obra, sempre se recriando até que... fenece. No devido caso, Picasso destruiu todas as obras que fez, e Omo que elas não permaneceram como aquele momento apoteótico referido outrora, como efêmero eternizado. À sua destruição encerrou o seu caminho no devir de ser.
Contudo, a destruição das obras fazia parte do contrato, quiçá para qualquer função em relação ao filme. Mais das vezes mantém-se a obra como o momento apoteótico, como efêmero eternizado, como... afirmação da vida a partir da criação artística. E, desta feita, estabelece-se não só o seu caráter de realidade, mas a sua própria manifestação e razão de ser advindas da realidade.