quarta-feira, 24 de outubro de 2007

A Crítica de Schopenhauer à Arte Medieval.

Schopenhauer, na Metafísica do Belo, estabelece dois modos de se conhecer, quais sejam o que parte do princípio de razão – espaço, tempo e causalidade – e, assim, conhece as coisas tão somente em suas relações, neste sentido tendo que ver com a vontade do indivíduo; e o conhecimento pelo qual intuímos a Idéia das coisas, completamente destituídos da vontade, onde o indivíduo se torna puro sujeito do conhecer. O primeiro modo de conhecimento terá que ver com a ciência, enquanto que o segundo é próprio da arte e é obtido através da contemplação desinteressada. Essa fuga do indivíduo e o tornar-se puro sujeito do conhecer destituído de vontade vem a ser o caráter genial estabelecido pelo filósofo.
Adiante, Schopenhauer coloca que há dois modos de se chegar à apreensão da Idéia, a saber: pela efetividade do mundo e pela obra de arte. Contundo, apreender a Idéia pela efetividade é mais complicado, uma vez que há grande possibilidade de nos envolvermos com a natureza, guiados pelo princípio de razão, por nossa vontade. Apreender a Idéia na efetividade vem a ser papel mais constante no artista, que o faz e passa essa apreensão para a obra de arte. Por seu turno, a obra de arte consiste em um meio facilitador da apreensão da Idéia, onde toda relação possível com a vontade é escamoteada e a efetividade já não é mais para nós, dada a fixidez da obra. Portanto, a finalidade da obra de arte é mediar de forma mais fácil a nossa apreensão da Idéia.
Dado esse preâmbulo geral de onde parte o autor, cabe-nos agora partir para a análise de como essas concepções se dão – e se o fazem de forma satisfatória – no período da Arte Medieval, mais precisamente no que toca a arquitetura gótica e as artes plásticas do período medievo.
Schopenhauer distingue dois tipos de arquitetura: como simples abrigo, a qual é necessariamente atrelada à vontade; e como bela arte, onde tem a finalidade estética e que nos interessa. Em seqüência, o filósofo coloca que o objeto da arquitetura, (que parte da pedra, a mais baixa expressão da Vontade), tem que ver com rigidez, gravidade, coesão, dureza, luz, e que o monotema desta arte é a luta entre gravidade e rigidez. Ou seja, a arquitetura aqui consiste na maneira como, na pedra, se darão esses dois valores. Se a gravidade vence, temos praticamente um amontoado de pedra precipitado no chão. Contudo, se temos essa luta de forma equilibrada, há aí a bela arquitetura, onde, por maio de mecanismos, o prédio sustenta todo o peso que quer desabar no solo. É capital notar que aqui Schopenhauer é bastante grego em sua consideração, e o melhor exemplo dessa arquitetura que ele apresenta seria justamente daquela cultura, e o elemento mais principal, a coluna, que evita a queda livre do entablamento e assim mantém a luta entre gravidade e rigidez.
Agora, se nos voltarmos para a arquitetura gótica, veremos que não é isso o que se passa neste período desta arte. Temos aqui a completa derrota da gravidade pelos prédios gigantes e suas torres e colunas altas que querem levar ao céu. Assim, não temos a luta entre gravidade e rigidez na arquitetura gótica, como fica exposto em:

“De resto, à arte arquitetural gótica não é aplicável a minha teoria estética sobre a arquitetura: a luta entre gravidade e rigidez não é seu tema; quase até parece que sua Idéia fundamental seria expor a vitória inconteste da rigidez sobre a gravidade, deixar simplesmente aquela exteriorizar-se sem que a pressão da massa se torne visível, pois tudo tende para cima, com formas pontiagudas, e a massa situa-se embaixo” (Schopenhauer, Metafísica do Belo, Cap. 11, p. 146).

Donde se vê o oposto da arquitetura grega, preferida por Schopenhauer. Mesmo adiante, no capítulo posterior ao da arquitetura – jardinagem e pintura de paisagem – o autor esclarece:

“Ora, a mesma relação parece existir entre a arquitetura grega e a gótica: a primeira é planejada objetivamente; a segunda, subjetivamente. A arquitetura antiga traz as Idéias de gravidade e rigidez, a exprimirem-se na pedra, à sua manifestação mais clara mediante a luta em que as coloca: os fins subjetivos da utilidade são com felicidade unidos a fins estéticos e objetivos. Ao contrário, nos edifícios góticos, o fim subjetivo do homem é salientado intencionalmente e expresso de maneira tirânica: aí tudo se refere ao homem e a seu serviço...” (Schopenhauer, Metafísica do Belo, Cap. 12, p. 151).

Ou seja, as Idéias que se apreendem da pedra – gravidade e rigidez – que se manifestam de forma mais acabada na luta entre si, não ocorre na arquitetura gótica, portanto, esta não se mostra capaz de apresentar às Idéias que se exprimem naquela mais baixa manifestação da Vontade.
Para tratarmos agora da pintura medieval, faz-se necessária a distinção entre conceito e Idéia. O conceito tem que vem com a ciência, e pode ser conhecido e demonstrado completamente por qualquer um pelo princípio de razão; a Idéia, como ficou claro, é apreendida pela intuição do puro sujeito do conhecer destituído de vontade e tem que ver com a arte. Assim, com relação à natureza da arte, segue-se que:

“A verdadeira e única fonte de qualquer obra de arte é a Idéia apreendida. Ela é haurida apenas da vida, da natureza, do mundo mesmo pelo gênio ou por quem se entusiasma, em instantes, até a genialidade.” (Schopenhauer, Metafísica do Belo, Cap. 15, p. 177).

Portanto, Schopenhauer não admite uma obra de arte autêntica que expresse por desejo próprio um conceito, como acontece com a alegoria, e é mostrado a seguir:

“Uma alegoria é uma obra de arte que significa algo outro que o exposto nela. [...] algo diferente do que diz (ao alegórico opõe-se o quirológico). Contudo, o que é intuitivo, por conseguinte a Idéia, exprime-se por inteiro, imediata e perfeitamente a si e não precisa da intermediação de algo outro para ser indicado.” (Schopenhauer, Metafísica do Belo, Cap. 15, p. 180).

Assim, não interessa para arte representar um conceito e, se uma obra alegórica é bela, o é justamente pelo que tem de intuição da Idéia, mas não pelo seu conceito, uma vez que a arte aqui não poder servir para estes fins. Ora, mas é exatamente isso o que se dá na pintura medieval: a prioridade da representação de um conceito – no caso, alguma passagem bíblica – em detrimento da apreensão da Idéia, ou seja, a preocupação na pintura medieval é a de passar uma história ou moral bíblica para os iletrados da época (praticamente todos) do que se apresentar como um medium facilitador da apreensão da Idéia. É o que se percebe nas palavras do historiador de arte inglês Sir Ernest Gombrich:

“Pois esses artistas não se propunham criar uma semelhança convincente com a natureza ou fazer coisas belas: eles queriam transmitir a seus irmãos de fé o conteúdo e mensagem da história sagrada” (Gombrich, A História da Arte, Cap. 8, p. 165).

E também as figuras são dispostas de modo a não deturparem a mensagem que deve ser passada, como se lê em:

“Não viu [o artista] nenhuma razão para representar a sala onde a cena ocorreu; isso poderia meramente desviar as atenções do significado interior do evento” (Gombrich, A História da Arte, Cap. 8, p. 166).

Ademais, e em concordância com isso, os pintores medievais não criavam propriamente a peça a ser pintada, mas partiam de modelos estabelecidos anteriormente, os quais já estavam consagrados para passar a mensagem da bíblia de forma inequívoca para os fiéis, como esclarece mais uma vez Gombrich:

“Tampouco um artista medieval da Europa Ocidental teria entendido por que haveria de inventar novos métodos [...] de representar uma história sagrada quando os antigos métodos serviam tão bem a esses fins.” (Gombrich, A História da Arte, Cap. 8, p. 163).

Vemos então que a necessidade de uma perfeita transmissão da mensagem bíblica, de um conceito, é associada à não-necessidade de criação artística, de intuição e representação da Idéia, o que se configura um duplo problema, e recebe, destarte, uma dupla crítica schopenhauriana, como se vê adiante:

“Totalmente ao contrário, porém, procedem os imitadores, os maneiristas, imitatores, servum pecus. Estes estão bastante conscientes de sua atividade, pois na arte lidam com conceitos.” (Schopenhauer, Metafísica do Belo, Cap. 15, p. 178).

Portanto, encontra-se duplo problema na pintura medieval: a preocupação da passagem de um conceito que acaba por desembocar na falta de criação e repetição de modelos antigos, o que inibe a expressão da Idéia pela obra de arte, que vem a ser sua finalidade.
Posto isto, vemos que na análise da arte medieval na Metafísica do Belo, no caso da arquitetura gótica, e a partir da referida obra no caso da pintura, com o apoio d’A História da Arte, de Gombrich, Schopenhauer acaba por não conceder status de plena arte aos objetos de nosso estudo, dado o seu pensamento profundamente grego no tocante à arquitetura, a qual não corresponde à arquitetura gótica; e dada a sua a concepção geral de arte, ou seja, apreensão das Idéias pela intuição do puro sujeito do conhecer destituído de vontade não se coadunar com as práticas da pintura do período medievo, o qual se preocupa com a passagem de um conceito, como ficou demonstrado; o que passará a lentamente mudar a partir do pintor italiano Giotto di Bondone, já na Idade Média Tardia, que começa a rejeitar os modelos preestabelecidos e passar a trabalhar em sua própria criação, a partir de onde já é possível perceber a concepção de Schopenhauer.No entanto, não pretendemos firmar como pedra basilar essa concepção acerca da arte medieval e aí ficarmos estanques, uma vez que nade se parece definitivo em arte e mesmo em qualquer outra coisa. O que nos interessa e dá prazer aqui é esse exercício de compreensão e interpretação de duas expressões da cultura humana.