quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A condição da arte em “A queda da casa de Usher”, de Jean Epstein.


Existem algumas diferenças entre o conto “The fall of the house of Usher”, de Edgar Allan Poe e a versão para cinema “La chute de la maison Usher”, de Jean Epstein. No primeiro o casal Usher é concebido por dois irmãos gêmeos; no segundo se trata de marido e mulher. A outra diferença é quanto à morte da personagem feminina. No conto de Poe não se sabe ao certo o que provoca o dito falecimento; no filme de Epstein há uma informação nesse sentido: a pintura. Ainda, enquanto no escritor norte-americano o tanto narrador-personagem quanto Roderick Usher passam tempos pintando, na película do diretor francês o primeiro já encontra o seu amigo a pintar avidamente o retrato da própria mulher. O primeiro veredicto, na película – e adiante se tratará apenas dela – que Roderick emite acerca do quadro de sua mulher p que “ela vive ali”. Fixe-se nisso. O segundo comentário por parte daquele que pinta é que sua mulher parece fenecer mais a cada pincelada que ele dá na pintura que a representa. Também se conserve isso.
A questão se passa como um Dorian Gray ás avessas: a mulher se degrada para que o seu retrato ganhe beleza, enquanto que no romance de Wilde se dá o contrário: para que o personagem mantenha a sua beleza faz-se necessário que o seu retrato se deteriore. Eis o leitmotiv da presente exposição, a saber, a relação entre arte e realidade, e em qual medida uma solapa a outra e, desta feita, qual posicionamento tomar ante tal dicotomia.
A primeira assertiva proferida por Roderick baseia-se justamente na segunda: ela só pode viver ali (na tela) porque a cada pincelada dada por ele a sua mulher chega mais perto da morte; ou seja, se esse algo real fenece, ele só poderá substituí-lo em sua representação. A questão capital é por que continuar a pintar se isso implica o desaparecimento da coisa propriamente dita? Lembre-se o artigo sobre Pasolini e a sua “Trilogia da Vida”, mais precisamente a pergunta com a qual se encerra “Decameron”: “Por que fazer arte se sonhar com ela é tão mais doce?” Assim sendo, por que fazer arte se esta nunca irá conseguir esgotar a própria vida, o próprio real, o próprio efetivo? A resposta que Pasolini fornece em “The Canterbury Tales” não interessa agora.
Estabeleça-se a problemática da arte e da efetividade (por assim dizer, esse mundo). É necessária esta terminologia. Comece-se pelo veredicto que possibilita o outro: a cada pincelada ela morre. Assim sendo: tanto mais a arte se estabelece mais ela impossibilita a manutenção do real (efetivo). Pense-se então em Platão: basicamente para o filósofo grego este mundo nada mais é do que aparência, a qual é cópia de uma Idéia que propriamente é, tem o seu ser, pelo fato de sempre existir, e de nunca participar do devir. Desta forma, sendo este mundo aparente cópia do mundo supra-sensível da Idéias, e, a arte sendo uma cópia do mundo aparente, como se estabelece no Livro III de “A República”, a arte não poderá ser o acesso privilegiado para a Idéia; ou contrário, este acesso será a investigação epistemológica, e, portanto, filosófica. Ressaltando ainda que o termo grego para arte equivale ao mesmo termo para técnica, esse raciocínio se estabeleceria ainda mais nas artes, por assim dizer, manuais (donde se entenda o privilégio da arte palavra, encontrado no Íon, uma vez que esta terá mais que ver com o pensamento, o qual, para o filósofo, é o diálogo da alma consigo mesma). Portanto, aqui, posta a arte tem-se a negação do que é.
No sentido contrário, pegue-se a outra assertiva de Roderick: “ela vive ali”. Ou seja, uma vez que a cada pincelada a personagem fenece, ela passa a viver na tela pintada, na sua representação, por tanto, o que corrobora e alargar a consideração de que, uma vez posta a arte, o real se esvai, perdendo, por assim dizer, o seu ser. Entretanto, aqui se insere uma guinada na maneira de se conceber a condição da arte. Desta feita temos a obra de arte como o lugar privilegiado onde reside o próprio ser do que é representado, uma vez que este “vive ali”. Por mais que soe estranho, isso se nos mostra através das concepções estéticas de Schopenhauer, a qual vem a ser diametralmente oposta a consideração platônica exposta acima. Para o filósofo alemão, o conhecimento que se pauta dentro do princípio de razão, baseado no tempo, no espaço e na causalidade, conhece apenas a relação das coisas, mas não estas mesmas; assim, o conhecimento a partir do princípio de razão apenas apreende o fenômeno, mas não a coisa-em-si. Falando de maneira platônica, aquele tem que ver com o conhecimento do que “vem a ser e nunca é”, não chegando a conhecer, portanto, o que sempre é. Dada essa aporia em sua teoria do conhecimento, Schopenhauer resolve o problema do conhecimento da coisa-em-si através da estética. Para tanto o filósofo de Frankfurt insere a noção de puro sujeito do conhecer destituído de vontade, que, através da excitação genial conhece as coisas mesmas, não seus fenômenos relacionados com outros. Ademais, note-se que aqui a obra de arte consiste em um medium facilitador para a apreensão da coisa-em-si. Destarte, tem-se aqui a arte como o lugar privilegiado onde se pode conhecer aquilo que em verdade sempre é, em sua idealidade (e conserve-se o sentido platônico de Idéia), em detrimento do conhecimento do que participa do devir, sendo este objeto de conhecimento do sujeito pautado no princípio de razão.
Isso posto, perceba-se a diferença cabal em Platão e Schopenhauer no que tange a importância epistemológica da razão e, ainda mais, na conceituação mesma da arte. É bem verdade que para ambos este mundo efetivo propriamente não tem o seu ser, mas apenas é fenômeno de uma manifestação outra, superior. Entretanto, o veredicto de Roderick só se sustenta se, por um lado pensar-se a arte como aniquilação do efetivo, assim sendo, platonicamente, e por outro, como superação ontológica desse mesmo efetivo posto em aniquilação. E qual dialética impossível efetivamente.
Verdade é que a arte nunca conseguirá esgotar o real, uma vez que esta nunca conseguirá, por mais realista que seja, representar todas as nuances que se passam na efetividade e, problema maior ainda, nunca dará conta da questão do fluxo, mesmo que essa arte seja o cinema. Mais cedo ou mais tarde uma descrição sempre cessa, e o mundo continua em seu devir. A arte, como bem lembra Camus, só poderá trabalhar com recortes de vida e, neste, dependendo do tratamento que dê, poderá esgotar mais ou menos o real. Contudo, uma abordagem ou um ponto de vista já é uma escolha castradora da multiplicidade de possibilidade que se oferece na efetividade. É, por assim dizer de maneira nietzscheana, perspectiva. E, por se tratar de Nietzsche, perceba-se o fragmento 298 de "A Vontade de Poder": “- Arte, conhecimento e moral são meios: em vez de reconhecer neles a intenção de incremento da vida, levaram-nos a uma relação de oposição com a vida, a “Deus”, - a algo assim como manifestações de um mundo superior, que desponta ocasionalmente por meio deste”. Donde se rechaça a concepção schopenhauriana desse lugar elevado que se dá à arte, que acaba por tratar de algo que não se pode auferir, uma vez que à coisa-em-si só se chega pela intuição desinteressada e a qual resulta numa experiência vazia, para a qual é necessária a formulação do conceito de gênio ao qual se tem que alçar, como fosse quase que uma graça; e o próprio instante genial também é uma experiência muda.
Portanto, prenda-se nisso: “reconhecer neles a intenção de incremento da vida”. Ou seja, perceber na arte, na criação, a pulsão da vontade de vida, ou de poder, para citar o termo nietzscheano. Donde se perceba que a própria criação artística já é ela mesma uma ação do mundo efetivo, e, portanto, tem o seu lugar na efetividade. Ademais, que o próprio objeto criado já é ele mesmo efetivo, portanto já faz parte do real. É ele mesmo, seja a representação de algo existente um pouco mais ou um pouco menos, ou seja ele uma criação dita abstrata (embora essa conserve ainda algo do mundo efetivo), já um objeto da realidade, que, uma vez criado tem sua existência dentre os demais objetos de consideração e representação no mundo efetivo.
Assim, o objeto da criação artística, uma vez produto de uma ação humana efetiva dada na realidade, neste mundo, tem o seu lugar aqui, tem sua condição ontológica salvaguardada, partindo do real, é verdade, mas pondo-se também à parte deste quando concluída a sua realização. É mais um outro dado do mundo efetivo, tendo neste a sua manifestação e expressão próprias.

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