quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Vermeer pintor do cotidiano


A proibição, por parte da Reforma Protestante, de se pintar temas de caráter religioso acabou por desenvolver uma pluralidade de temas na pintura. Na Inglaterra se estabelecem principalmente o retrato e a pintura da paisagem; nos Países Baixos, a natureza morta e a “pintura de cotidiano”, por assim dizer, e que, neste sentido, começa com “Giovanni Arnolfini e sua esposa”, de Jan van Eyck. Entretanto, nos Países Baixos, pelo fato de durante um tempo este ter estado junto à espanha, havia ainda o cultivo da pintura histórica, como se nota plenamente em Rubens, e também em Rembrandt, embora este já comece a o câmbio pelo qual passa a pintura holandesa, o qual se completa com Vermeer. E, entre esses temas marginais à pintura histórica, tem-se que fazer algunas ressalvas. Comece-se pelo retrato, onde a figura humana é louvada, passe-se pela pintura de paisagem, e depois à natureza morta, cegando por fim à “pintura de cotidiano”, a qual abarca uma cena maior em vez de se encerrar em um objeto particular, e donde retorna a representação humana.
O retrato já era praticado na Roma antiga, como atestam alguns frescos de Pompéia. Entretanto, só minimamente é cultivado na Idade Média, apenas na medida em que se associava uma figura ante o sagrado à pessoa que encomendou o quadro – associação por que se quer é retratação de determinada pessoa. Apenas com o Renascimento e a ascensão da burguesia o retrato retorna a se desenvolver, assim como o auto-retrato, donde o maior exemplo talvez seja o de Dürer. No mais, os retratos se configuram como representações de riqueza, a exemplo do já referido quadro de van Eyck. Todavia, ainda há divisão de espaços temáticos com a pintura histórica. Eis o que não se passa na Inglaterra: livre dos temos históricos a pintura inglesa pode se dedicar exclusivamente ao retrato (Reynolds) e a pintura de paisagem (Constanble). É capital notar, no entanto, que os retratos feitos são de personalidades importantes, portanto, há que se inserir uma aura grandiosa, austera, graciosa, seja o que peça o caso, na figura retratada. Desta maneira, há um enaltecimento da figura humana. No tocante à pintura de paisagem é necessário ter em mente a noção de pinturesco, i. é, a condição de que nem todas as paisagens são dignas de serem pintadas – e donde vem a palavra pitoresco: ou seja, apenas determinadas paisagens são pintáveis; e aqui tem-se uma eleição valorativa acerca da natureza que chegará até o sublime de Turner. Assim sendo, embora a pintura inglesa não se baseie em um tema histórico relevante, acaba por representar ainda pessoas ou lugares dignos de importância e contemplação.
Algo diverso passa com os outros dois temas desenvolvidos na pintura holandesa, a saber, na natureza morta e na “pintura de cotidiano”. No primeiro tema, nada poderia ser mais insignificante para a representação pictórica do que a natureza morta, caso se siga com Schelling, Hegel ou Schopenhauer, por exemplo. Isto quer dizer: elegendo-se a figura humana como a mais excelsa para a representação artística, a pintura de temas inorgânicos ou com pouca vida será a mais distante da pretensão artística. Dizem não menos esses filósofos que na natureza morta o que faz com que esse tipo de pintura seja arte é somente a capacidade do artista, uma vez que o tema não pode significar nada e, portanto, não seria digno por si de ser pintado. Desta maneira, passando-se da pintura histórica religiosa da Idade Média à pintura de natureza morta na Holanda, passa-se do tema mais elevado ao mais banal. E, caso se queira estender a noção de Ortega y Gasset de intranscendência da arte, a qual o filósofo espanhol encontra na arte de vanguarda por esta se preocupar apenas com o pintar e não com o tema, e, mais, por negar representar os temas mais elevados, e, portanto, conceber-se como arte artística, pode-se encontrar traços genealógicos na pintura de natureza morta, a qual se constituiria arte única e exclusivamente por causa do artista, como colocavam os pensadores alemães. Assim, pode-se encontrar aqui o início da intranscendência da arte através da não representação de temas históricos, uma vez que a pintura histórica aí se dá como o supra-sumo da arte figurativa, contendo e abarcando em si todas as possibilidades de significações profundas.
Passe-se agora para o que foi chamado de “pintura de cotidiano” e que, começando com van Eyck, passando por Rembrandt em “Ronda noturna” e “Aula de anatomia do Dr. Tulp”, chega de maneira primorosa em Vermeer. O que se tem aqui é sem dúvida a representação da figura humana, a qual já foi quista com a finalidade da pintura (Schelling, Hegel, Schopenhauer). Acontece que neste ínterim a representação humana não se dá mais na pintura histórica, a mais excelsa para estes filósofos. O que se passa são as pessoas em seu fazer cotidiano, como a aula de anatomia de Rembrandt ou a aula de música de Vermeer, donde se pensa chamar corretamente essas obras de “pintura de cotidiano”. Assim, a significação do quadro não advém da importância da cena representada, de seu sentido profundo ou superior.
Quiçá aqui se possa pensar em Camus, quando este diz que qualquer atitude ante o absurdo é válida caso se mantenha a consciência naquele, ou seja, sem elidi-lo, donde se apreende que a atitude superior tem o mesmo valor ético-ontológico ante a fixação no mundo. Ademais, como já se falou em “Beckett: passatempo e prazer”, trata-se ou de ascender a atitude banal ou rebaixar a atitude superior, pois ambas são representadas artisticamente e exprimem beleza, portanto, crê-se que sua dignidade enquanto objeto representado está salvaguardada; e, ademais, caso se pense camusianamente, ambas são atitudes válidas ante o absurdo se não o elidi. E, do mesmo modo que no ensaio sobre Beckett, fique-se com a segunda opção: decaia-se a superioridade da atitude histórica superior.
Eis o que faz Vermeer: assumindo a decaída do sentido superior, dá as costas a este e volta-se para a pintura de cotidiano, como se vê em “Moça lendo uma carta à janela”. E, retomando-se Ortega, se não se pode encontrar em Vermeer toda a instranscendência e desumanização da arte, tampouco as obras do pintor de Delft têm que ver com o caráter melodramático que o filósofo espanhol vê naquele movimento romântico, o que só é possível com a pintura histórica. Ainda mais, pelo fato das pessoas representadas serem anônimas, a tentação de reconhecer ou se reconhecer na cena diminui drasticamente, o que colabora ainda mais para a fruição puramente artística da obra no sentido orteguiano para as vanguardas, ou seja, dada a desumanização da arte e a impossibilidade de empatia com esta, abre-se espaço para a pura fruição artística, i. é, ater-se ao que há de artístico e voltar-se as costas ao que tem de história, de humano. Nisso tudo, aqui se encontra a figura humana no prosaico, sem qualquer intenção de ascender, como em “A leiteira”. Basta o simples fazer cotidiano para que se possa extrair a beleza, o que se constitui um ganho fundamental para o desenvolvimento da pintura passando pelo Impressionismo e pelas vanguardas, donde a tentação da pintura histórica retornará.
Vermeer se configura assim o primeiro passo bem acabado para a futura intranscendência da arte; e, tudo isso por ser Vermeer o pintor do cotiadiano.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Rembrandt: a luz como instante pregnante.



Através da exposição de Rembrandt no Museo del Prado, (Rembrandt pintor de histórias), realizada de 15 de outubro de 2008 a 6 de janeiro de 2009, percebe-se matizes do pintor holandês quiçá distintos do que se pode pensar acerca dele. Talvez pelo conjunto exposto, no qual não se encontra as célebres “Ronda noturna” e “Aula de anatomia do Dr. Tulp” ou pela ênfase da curadoria em colocar Rembrandt como pintor de histórias, pouco se encontra do desenvolvimento ao cotidiano pelo qual passa a pintura holandesa depois de Rubens, mais notadamente no pintor motivo deste ensaio e também em Vermeer; e, somada a ausência da pintura cotidiana, tem-se a pouca atenção a famosa técnica de Rembrandt, qual seja, o claro-escuro. E, ao colocar-se isso, vai-se de encontro a Ortega y Gasset e a sua consideração acerca do claro-escurismo no desenvolvimento da pintura tátil em direção a pintura visual, que está no ensaio “Sobre o ponto de vista nas artes”:
“Pero he aquí que entre ellos (los cuerpos) se desliza un nuevo objeto dotado de un poder mágico que le permite, más aún, que le obliga a ser ubicuo y ocupar todo el lienzo sin necesidad de desalojar a los demás. Este objeto mágico es la luz. Es ella una y única en toda la composición. He aquí un principio de unidad que no es abstracto, sino real, una cosa entre las cosas, e no una idea ni un esquema. La unidad de iluminación o claroscuro impone un punto de vista único”
Assim, para o filósofo espanhol claro-escurismo se constitui na ante-câmara da pintura visual, ou do vazio, a qual fixa o ponto de vista do pintor, e que será levada a cabo por Velázquez. Ante-câmara pois ainda há o elogio à corporiedade e o passeio do olhar sobre a superfície do quadro, mesmo que esse passeio seja guiado pelos pontos luminosos que reclamam atenção, como fala Ortega y Gasset. E, nesse âmbito, o maior exemplo se dá com “Ronda noturna”. Agora bem, como este quadro não faz parte da referida mostra do Museo del Prado, percebe-se, desta feita, outros matizes na obra do referido pintor.
O que se apreende dessas obras expostas no Prado é uma certa particularidade dentro do claro-escrurismo. Têm-se, na maioria das vezes, construções pictóricas quase que completamente escuras, nas quais se revela um único ponto luminoso, que, se não é necessariamente o centro geométrico da cena representada, é o pólo de atenção da representação. Além do contraste entre o claro e o escuro, ou, neste tocante, entre o escuro e o claro, e a partir deste mesmo, tem-se o gradual contraste entre o tratamento das figuras que fazem parte da cena, o qual vai da mera sugestão através do esboço (nas regiões escuras) à perfeição plástica, a qual se encontra no foco luminoso do quadro. Assim, no esboço escuro e na perfeita retratação luminosa encontra-se, no cerne deste jogo, uma questão valorativa com relação à cena representada. E, como se verá, isso será o essencial na apreciação e apreensão destas obras de Rembrandt.
No entanto, antes se faça um parêntese para a inserção de um conceito relativo à construção de imagens. Trata-se da noção de instante pregnante que Jaques Aumont explora em “O olho interminável”. Ora, como se pode perceber no próprio conceito, instante pregnante será o instante grávido de um significado, de uma mensagem, para a compreensão da cena. Ressalta Aumont que a noção de instante pregnante é essencial para a construção da mise en scene da pintura – tome-se aqui toda a pintura que tem por tema relatos mitológicos, religiosos ou históricos. O que se passa é que, como a pintura é a arte da imagem parada, em contraposição com o cinema, o pintar, para que consiga atingir os fins os quais almeja, tem que construir uma mise en scene na qual o que pretende representar seja dado de uma única mirada, pois, a pintura, nesse caso, ao cortar o fluxo, estabelece o instante como pedra de toque onde se fundamenta. E, portanto, para que possa comunicar a mensagem que pretende tem que eleger um instante grávido de sentido, de significado, ou seja, trabalha com a noção de instante pregnante, no qual o significado a ser expressado advém dos já referidos temas. Posto isto, retorne-se a Rembrandt.
No desenvolvimento da pintura holandesa, que começa com Rembrandt e vai até Vermeer, a noção de instante pregnante não se faz muito necessária nas pinturas de cotidiano, uma vez que, embora ainda se trate de instante, esse não tem que carregar em si uma gravidez de significados, uma vez que o que se pretende representar é corriqueiro em sua pura manifestação de simplicidade – o que é levado a cabo definitivamente pelo pintor de Delft (isso em si já constitui tema para outro ensaio). Desta forma, no Rembrandt cotidiano (“Ronda noturna” e “Aula de anatomia do Dr. Tulp”), uma vez que não quer significar muito, o claro-escurismo cumpre a função encontrada por Ortega y Gasset, i. é, tem a plena liberdade para que a luz funcione como tema e elemento unificador da obra; a bem dizer, ela chega a ser o centro da preocupação do artista, como se poderá ver mais categoricamente no desenvolvimento cabal dessa idéia, que se dá no Impressionismo, onde, inclusive, a noção de instante grávido de significado será completamente escamoteada.
Contudo, volte-se à exposição do Museo del Prado, ao Rembrandt pintor de histórias. Como já foi exposto, ao se tratar de temas mitológicos e religiosos faz-se necessária a construção da mise en scene para que esta carregue o instante pregnante. Com Rembrandt não se passa de outra maneira. O que há de diferente entre ele e seus predecessores, inclusive Rubens, é o já referido claro-escurismo, que aqui, em vez de falar como uma técnica que tem fim em si mesma, aparece para melhor servir o artista no ato de engravidar o instante o qual representa. E, desta feita, ter-se-ão os já referidos contrastes dos pares escuro-esboço e luz-definição. O que Rembrandt faz é isolar o significado superior do quadro em um único foco luminoso e bem definido, ficando o resto da cena que não foi eleita como parte principal relegada à escuridão e ao esboço. Assim, o pintor holandês concentra a cena num determinado ponto e todo o seu redor se mostra como não digno de contemplação, e, por vezes, mesmo impossível de apreensão, já que tudo se mostra escuro e apenas esboçado. A não ser que o que se deva apreender seja justamente a escuridão e o caráter mal acabado que tal região do quadro merece. E eis aqui onde reside o viés valorativo no claro-escurismo, o qual se percebe da maneira mais bem acabada nas pinturas de tema bíblico, onde o foco luminoso sempre se concentrará onde estiver representado Jesus Cristo ou algum santo, enquanto que o espaço a seu redor, seja a multidão, a natureza ou a arquitetura, fica no obscurecimento. Para tanto, veja-se “A apresentação de Jesus no Templo”, “A mulher flagrada em adultério” e “Descanso da fuga ao Egito”, por exemplo. E, tendo-se em conta o caráter revelatório da religião cristã, e, mais ainda, a associação da revelação com a luz divina, então se encontra a maior manifestação da luz como elemento de valoração da construção da cena. Tem-e a eleição das figuras mais sagradas como dignas de luz, enquanto que a grande parte da representação no quadro permanece na escuridão. Talvez seja mais: só à poucas figuras da história merece-se conceder a luz, pois apenas essas podem carregar em si a plenitude de significados que a obra pretender passar. Fim das contas, tudo se passa como uma questão valorativa, e, neste tocante, absolutamente moral.
Eis porque em Rembrandt pode-se encarar a luz como o instante pregnante.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Outra canção do exílio

Não o há aqui
Nem tampouco lá
Algo como assim
Ter um sabiá

As mesmas estrelas
Ainda sem flor
Sempre eu e o bosque
Mesmo sem amor

O cismar contínuo
Que prazer gozar?
Não é condição
Ter o sabiá

Não importa a terra
Nela se fiar
O cismar contínuo
Que prazer gozar?
Não é condição
Ter o sabiá

Como não há Deus
Não preocupará
Não importa a terra
Em que se fiar
Não é condição
Ter o sabiá

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Arca Russa, de Aleksandr Sokúrov.

Não se imaginaria que do cinema russo, então soviético, pudesse se extrair, cerca de oitenta anos depois, algo como “Arca Russa”, de Aleksandr Sokúrov. Ora, vem a ser esse filme a negação completa do que é conhecido como montagem russa. Quiçá, esta película seja o extremo oposto do cinema pensado por Eisenstein, algo mais próximos às teorias de Bazin ou aos filmes de Robert Bresson. Ademais, essa dicotomia toca profundamente na questão do tratamento da realidade. A película de Sokúrov tem 97 minutos ininterruptos, durante os quais apresenta o Hermitage. Não há qualquer corte, e, desta maneira, a montagem é mínima, atendo-se apenas às questões de créditos. Eis o que vai de encontro com o cinema de Eisenstein e o aproxima de Bazin e Bresson, assim como da nouvelle vague, escola que nasce das reflexões daquele ensaísta do Cahiers du Cinemá.
Sokúrov apresenta três séculos de história russa utilizando-se, para isso, do Hermitage e de um personagem que vem do futuro e, por isto, pode apresentar tudo o que se passa fantasmagoricamente na película. E, mais capital, apresenta esses três séculos da história de seu país de maneira quase que imparcial. Eis também onde Sokúrov se aproxima de Bazin e Bresson e se distancia de Eisenstein: para o mestre da montagem soviética não se trata de filmar com imparcialidade, mas de incutir o sentimento preestabelecido no filme para que o espectador o absorva exatamente esse sentimento inserido na obra. E, para tanto, Eisenstein não se furta a mudar a história de seu país. Eis o motivo do uso da montagem dialética, a saber, para, com a manipulação da estrutura fílmica poder manipular as sensações do espectador. Montagem aqui não é técnica que envolve o público, como na montagem paralela de Griffith, mas um recurso ideológico para a educação do proletariado, como bem se percebe em “Outubro”, onde a própria história da Revolução Russa é alterada. Assim, a montagem em Eisenstein é ideológica e condutora do espectador.
O que se passa com Bazin e Bresson é exatamente o contrário: trata-se de usar a montagem o mínimo possível para que não se fuja da realidade ao abusar daquela. Desta maneira o que importa para estes franceses é a representação pura e simples do real, e, portanto, escamoteia-se a montagem que induz o espectador a sentimentos e leituras definidas de antemão; não se tem, então, a montagem ideológica, e isto devido a outra particularidade daqueles franceses, qual seja, o catolicismo. Ambos têm um sentimento religioso muito forte e isso também influi na concepção de cinema, pois, quando se trata de representar o real sem montagem, ou seja, o real como é, a intenção é que se pereba, no real, uma manifestação divina. O real, para ambos, é o espaço privilegiado donde pode se dar uma epifania. O cinema, então, é um médium para a apreensão de Deus, e, destarte, aproxima-se de Schopenhauer, enquanto que Eisenstein estaria mais perto de Aristóteles, uma vez que a catarse, para o estagirita, é ética, e, portanto, política. Voltando, uma vez que para Bazin e Bresson o divino pode ser manifestar no real, o cinema não pode montá-lo ao seu bel prazer, mas, apenas representá-lo, e fazer uso da montagem só quando necessário, pois, fim das contas, também é questão técnica, e o cinema só consegue se estabelecer devido a montagem, e, mesmo era impossível um filme sem cortes, como ainda é o caso de “Festim Diabólico”, de Hitchcock, como se verá mais adiante.
Ora, tampouco o que se passa com “Arca Russa” é esse tratamento do real como campo de manifestação divina. O que Sokúrov realiza é mais aquém, entretanto, mais complexo. Note-se que, ao escolher filmar a história russa a partir e dentro do Hermitage, o diretor faz a escolha de representar um passado apoteótico russo, e, apoteótico no sentido que esta palavra tem em relação às artes plásticas como insere Nietzsche em “A vontade de poder”. Assim sendo, nas artes apolíneas, e aqui somando-se à pintura e escultura tem-se a arquitetura. Faz-se necessário aqui lembrar que para o filósofo do martelo esta arte apoteótica seria necessariamente a arte apolínea, uma vez que fixa, mais do que qualquer outra, o seu objeto de representação. Entretanto, sendo o cinema movimento, ou, quiçá, mais propriamente fluxo, Sokúrov consegue imprimir essa qualidade de fluidez àquele passado apoteótico; dá à película, portanto, o seu quinhão de devir. E não é senão a noção de arte dionisíaca. Ainda mais pelo fato de não haver corte no filme, este se passa como uma dança contínua e, talvez não seja sem razão que a película se encerre com um baile, ou seja, com música e dança. Destarte, todo o filme se passa como um fluxo de momentos apoteóticos da história russa; um continuo fluir dionisíaco balizado por belezas apolíneas. E, não fosse o roteiro algo fantástico, todo o filme se ateria necessariamente ao real. Nesse sentido ele fracassa; não na aspiração de uma representação quase plena da realidade, mas no que tange à inserção do fantástico.

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“Festim Diabólico”, de Hitchcock se passa quase que exatamente como o filme de Sokúrov, a não ser por duas exceções: primeiro, por questões técnicas, o diretor inglês foi obrigado a fazer cortes, dada a duração do material de captação; contudo, Hitchcock efetua esses cortes de maneira que não se os perceba, mantendo, então, a noção de plano-seqüência; segundo, o filme, embora gire em torno de uma situação absurda, por assim dizer, não parte para o fantástico, i. é, não tem confusão de passad e presente como em “Arca Russa”; aqui pode-se afirmar que a duração da película é propriamente a duração da ação, uma vez que não se tem cortes temporais. Ou seja, toda a ação se passa no presente, sem flashback ou forward. E outra característica que acentua o fluxo da película é a ausência da preocupação plástica exacerbada. Ambas as películas, por fim, têm que encerrar o fluxo, dada a natureza própria da arte e do funcionamento do ato reflexivo humano, e, ademais, como ressalta Ortega y Gasset, por não se poder conhecer o começo e o fim da vida, uma vez que esta é contínuo executar-se. Há que se fazer um recorte para que se tenha uma representação artística, pois não se pode ter uma representação ad infinitum. O recorte de vida artístico funciona como o conceito filosófico: possibilidade fixa de apreender a realidade.

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Diferenças a parte, o que se apreende de ambos os filmes, de uma forma ou de outra, é a decisão de encarar a realidade com o fluxo, o devir que esta é, e não como se queira interpretá-la, direcioná-la, montá-la de acordo com parâmetros exacerbadamente racionais. A razão tem que trabalhar dentro da realidade e não fazer como que esta se adéqüe a si; ou seja, não distorcer a realidade para agradar os caprichos da razão. Trata-se, assim, nas duas películas, de fazer esforço para que, a partir dos meios que se tem, poder representar a realidade em seu devir constante, ainda que tenha que parar em certo ponto. O contrário faz Eisenstein: esforça a realidade para que esta atinja os fins da razão. A ditadura da razão pode seduzir que já é afeito a ditaduras. Mas, a quem apetece as coisas como são e estão, em seu desenvolvimento natural, e, portanto, real, faz da razão apenas meio de apreensão e instrumentalização desta.
Ademais, ambos os filmes demonstram a maneira mais bem acabada que se conhece para a representação que se conhece para a representação da realidade através de imagens: o plano-seqüência. A montagem russa está para ditadura assim como o plano-seqüência está para a liberdade.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Impressões de Salamanca

Camus e Benjamim falavam que a melhor maneira de se conhecer uma cidade é se perdendo nela. Isso desvela muito mais do que um romantismo em relação a cidade; antes de tudo marca uma diferença entre o estrangeiro, por assim dizer, e o turista. Este último, muito comodamente trabalha com o guia, seja uma pessoa, seja um papel. E, mais que uma orientação, o guia fornece um a priori, e este é o capital. Isto se dá ao se indicar para visitação os lugares propriamente turísticos, o que também mostra uma outra faceta do guiar-se predeterminado: a incapacidade de se conhecer a própria vida do lugar, cambiando estes para a contemplação dos costumes feitos para turistas, “macumbas para turista”. Assim, não se experiencia a própria vivência do lugar. Além de se perder é necessário ir aos lugares que os habitantes da cidade costumeiramente vão, para que, destarte, saiba-se o que se passa cotidianamente naquele lugar, escamoteando as possibilidades de deslumbramento, o qual pode funcionar como escape da realidade que se apresenta.
A questão é perder-se, como acontece quando se tenta encontrar um bar ao qual já se tenha ido, mas ao qual não se sabe voltar, e, então, percorre-se todas as direções que a Plaza Mayor permite, para que assim se chegue ao lugar desejado sem que se pergunte nada a ninguém. E parte-se da Plaza Mayor porque sempre se faz necessário que se estabeleça um ponto donde começar a considerar as demais coisas. Pode-se pensar que seja subjetivismo ou solipsismo, mas antes, seja questão de perspectiva. Fato é que não se pode reflexionar nada se não se tem um cais. Caso contrário fica-se no devir eterno, e, embora a realidade se dê mesmo dessa maneira, só se consegue trabalhá-la ao se fixar algo, mínimo que seja. Contudo, estabelecer a fixidez e apoditicidade de tudo acaba por negar por quase completamente o que se passe; é a tarefa do turista guiado, que trabalha segundo um a priori. Ora, por que um a priori? Ver-se-á quão perto da epistemologia tudo isso está.
O turista guiado tem um a priori porque o seu processo de conhecimento da realidade depende de algo que já está fora desta, embora tenha sido haurido daí. O que acontece é que tudo se passa como sem tivesse uma meta privilegiada e idealizada a qual deve-se chegar enquanto fim-em-si. E pensar que a realidade tem uma meta para tingir é demasiado: eis o que Nietzsche é contra: eis o que a teoria de eterno retorno nega. O que se passa com o turista guiado é um falseamento da realidade, uma vez que este parte da idealização daquela. Por mais que o movimento possa ser dialético, ao cabo pretende-se a realização de uma idealização, embora, para que se fixe esta dada idealização seja necessário um contato prematuro com a realidade. Não pode haver qualquer idéia que não seja um mínimo de extrato do real. A questão se coloca no grau de idealização que se faz da realidade e a seguinte graduação de balizamento que aquela influe sobre esta. Trata-se, como diria Quine, de “compromisso ontológico”. E, desta maneira, fique-se com o mínimo.
Portanto, em dentrimento do turista guiado fique-se com o estrangeiro. Este tampouco conhece a cidade, assim como o turista; quer dizer, conhece menos ainda, uma vez que o turista parte do pressuposto de um algo dado, de um a priori. Para o estrangeiro a experiência se dá unicamente a partir da realidade radical, i. é, o seu primeiro dado é a própria realidade enquanto ato que vai se executando, assim como ele. Ou seja, o real é a pedra de toque donde o estrangeiro irá construir o seu conhecimento acerca do incógnito. A situação é completamente oposta: de um lado se tem a construção do real a partir da idéia; do outro, tem-se a formulação de idéias a partir do real. Jogo de palavras a parte, a questão vai mais além, ou, antes, mantém-se mais aquém. Não se trata necessariamente de formulação de idéias a partir do real o que faz o estrangeiro. Pode-se e deve-se permanecer mais aquém. O que se faz necessário, e não poderia ser de outra forma, é a reflexão acerca do que se passa para que se fixe um dado preciso a partir do qual se mantenha a vida. Basta o simples forjar de um conceito, o que é, em sua raiz, possibilidade de manutenção da vida, com o que Nietzsche concorda. Mais do mesmo, é a aceitação do mínimo de compromisso ontológico para que se possa lidar com a vida de modo satisfatório, pois, mais cedo ou mais tarde se tratará de fixar algo da realidade, o pouco que seja, não necessariamente um conceito bem acabado, mas, fim das contas, dado o logos, é do que não se pode escapar.
Primórdios de tudo, pense-se que o único que está é a realidade efetiva, a realidade em ato. Apenas depois da reflexão da experiência é que se torna possível a criação de um conceito, uma idéia, mediante a linguagem. Bom, esse tempo imemoriável já se foi e não se pode recuar. Já se nasce com conceitos formados esperando pra ser aprendidos. E faz-se isso sem que se sinta até o espanto. Uma vez dado esse, é questão de honestidade ôntico-epistemológica que se estabeleça a realidade como paridora de tudo que advém, e não o contrário, i. é, pensar a idéia como grávida. Trata-se do instante pregnante, como fala Aumont acerca da pintura. Mais: acontece que todo instante é pregnante, a depender da perspectiva. A noção de um instante pregnante só se deve ao fato da condição de possibilidade da reflexão, que é a fixidez do fluxo. E, se a necessidade de fixidez é uma necessidade moral para a manutenção da vida, ater-se à realidade prioritariamente e o máximo possível é questão de honestidade ontológica.
Dado todo esse qüiproquó epistemológico, apreende-se que o posicionamento ético-ontológico que se mantém nos limites mais baixos, portanto, mais próximos da realidade efetiva, da realidade enquanto ato, é o deixar-se perder-se do estrangeiro.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Modigliani escultor.


Modigliani foi o pintor trágico por excelência da Paris efervescente do início do século passado. E talvez essa tragicidade, ao mesmo tempo que gera mais aproximação em relação ao artista, pode contribuir para obscurecer aspectos de sua obra: é o que se passa no filme estrelado pó Andy Garcia. Deixe-se então de lado o mito, uma vez que ao se trata de ética, e parta-se para a sua obra. As primeiras pinturas de Modigliani pouco têm que ver com as quais o consagrará. Contudo, toda a sua produção, por mais que se divirja, cabe dentro do universo pictórico pós-impressionista. E fato é que o artista italiano não se enquadra em nenhum dos movimentos que esbanjavam naquela época; como ele, muitos outros, a exemplo de Soutine e Utrilo, amigos seus, bem como Chagall e Van Dogen, para citar alguns do que é conhecido como Escola de Paris: como esses artistas expatriados não aderiram a movimento algum, mas todos viviam em Paris, deu-se essa denominação. E, por lá viver, Modigliani acaba por sofrer algumas influências comuns entre os artistas da época, como é o caso da absorção da escultura africana recém-descoberta, a qual contribui necessariamente para o cubismo sintético. Contudo, como se verá, as demais influências do artista diferem das dos demais.
Modigliani carrega sempre consigo grande influência da arte italiana, uma vez que fora educado na Itália, e mais precisamente, na fruição das obras da antiga sede das belas artes. Entretanto, nas primeiras pinturas pouco se percebe isso, mas, antes, muito de pós-impressionismo, dado o ciclo no qual conviveu em seu país de origem. A guinada artística decisiva para o italiano se dá pelo conhecimento de Brancusi e sua escultura. Ao tomar contato com este, aquela abandona a pintura e passa a se dedicar à escultura, e aí se inserem os estudos das cariátides, as quais representam a primeira vinculação de Modigliani à tradição da antiguidade. Ademais, os seus desenhos de cariátides já revelam a dívida com Brancusi e com a escultura africana. No entanto, devido a problemas de saúde, Modigliani consegue suportar o pó extraído das pedras que esculpia, e, assim, tem que abandonar a escultura. E, uma vez deixada de lado essa forma artística, ele irá se dedicar novamente à pintura. Pode-se estranhar tratar de um Modigliani escultor quando o artista tão pouco produziu nesta ceara; e mesmo se tratará mais aqui de pintura. Acontece que apenas pelo contato com a escultura é que se dará o futuro Modigliani e toda a sua contribuição para a pintura.
O contato do artista italiano com Brancusi e a escultura negra, o que direcionava o seu próprio esculpir, é fundamental no tratamento do rosto na pintura, o qual advirá de suas cabeças de pedra. E, desta maneira, ter-se-ão os rostos alongados, os olhos em elipses, os narizes e bocas bem marcados. Contudo, isso é pouco para diferenciar Modigliani do cubismo ou do expressionismo, onde, por vezes, têm-se disposições faciais semelhantes; aqui entram em cena mais influências do artista as quais não foram aproveitadas pelos demais pintores na representação humana. Sim, pois, para “o nosso aristocrata” tratava-se quase que exclusivamente de pintar figuras humanas; e, neste sentido, ainda pode ser percebida outra diferença entre os “membros” da Escola de Paris em relação a seus contemporâneos. Assim, ainda se tem outra marca do esculpir na pintura de Modigliani, qual seja, a noção de volume, a qual será fundamental para os seus nus, os quais diferem bastante das representações de nus de seus contemporâneos justamente pelo volume que o artista italiano consegue imprimir a ele, sem mencionar na carnalidade que ele exalam, do que se falará mais tarde.
No percurso de seus estudos e influências italianas, Botticelli se estabelece como marca fundamental na concepção e estilização das figuras humanas daquele artista trágico. Notadamente “O nascimento da Vênus”, do pintor proto-renascentista é capital para a suavidade e sensualidade que Modigliani colocará em seus quadros. Não por acaso que ele era tratado como um “Botticelli moderno”. E o próprio Botticelli tem o seu que de modernidade ao alongar o pescoço e abaixar os ombros de sua Vênus para poder suavizá-la. E, assim, percebe-se de onde Modigliani extrai como seu estilo os pescoços longos e os ombros caídos, bem como o rosto ovalado e esticado, advindos tanto do pintor da Vênus como da escultura negra. Ademais, o diálogo de Modigliani com a tradição pictórica não pára aí, não se restringindo a arte italiana; tem-se ainda leituras de Goya, Ingres e Manet. Ou seja, a sua educação para o tratamento do corpo depende mais da tradição do que da efervescência das vanguardas.
Por fim, a última e decisiva influência de Modigliani é a escultura greco-romana, ou pelo menos o que se ficou dela, mais precisamente no que se refere ao olho. Exatamente o tratamento dispensado aos olhos pela escultura clássica antiga, i.é., a representação dos olhos sem pupila, mas como único contínuo, onde não se expressa nada, será decisivo utilizado pelo artista italiano. É bem verdade que, pelo menos na escultura grega tinha-se o uso de pedras coloridas para a representação do globo ocular. Conduto, essas peças se perderam e o que restou foram aquelas nas quais a superfície do olhar é tratada como uma única, contínua e vazia superfície, a qual não se sabe para onde olha. Excetuado-se a mudança da cor do rosto e do olho, é isso o que faz Modigliani ao pintar tudo aquilo que poderia ser considerado “olhar” com uma única cor, retomando aquela tradição escultórica na qual se dá o instante kierkegaardiano. Este, a saber, consiste na possibilidade de eternidade na temporalidade, e o filósofo dinamarquês encontra uma representação do instante naquele tipo de escultura, como se vê no “Conceito de angústia”. Assim, Modigliani devolve à arte a noção de instante, quiçá não pregnante, como fala Aumont a respeito da pintura clássica, mas, quem sabe, um instante de vazio, como se pode perceber em Hopper de maneira diferente. A própria condição de eternidade é quase que interente a arte; e aí, pode-se falar com Kierkegaard: é uma eternidade no temporal, ou, um efêmero eternizado.
A partir de tudo o que foi posto, Modigliani consegue resgatar duas noções para a arte de vanguarda as quais pareciam estarem perdidas. A primeira vem em negação a Ortega y Gasset e sua desumanização da arte: se cubista e expressionistas contribuíram para o tratamento da figura humana de maneira não humana, Modigliani, assim como alguns dos “membros” da Escola de Paris, começam por reconstituir as características humanas na pintura, por mais que ainda façam uso de algumas mesmas influências que aqueles artistas. A segunda terá que ver com o volume, suavidade e sensualidade que o artista italiano imprime em suas peças: Modigliani resgata a carnalidade perdida na pintura, e, aqui, tem-se que ser extremamente camusiano na exigência de um “suporte de carne” para a criação artística ou filosófica. Assim sendo, não se tem mais aqueles “criadores de irrealidades” dos quais falava Ortega y Gasset a despeito do cubismo e do expressionismo. E, se esses para o filósofo espanhol são artistas intrascendentes, com Modigliani desce-se um nível a mais na escala da imanência e chega-se a própria carnalidade, mais das vezes sensual. Ora, toda essa guinada pictórica feita por Modigliani só é possível quando da guinada do Modigliani escultor.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A propósito de “O Mistério de Picasso”, de Clouzot.


Como trata Ortega y Gasset em sua revisão da história da arte a partir do ponto de vista do pintor, os cubistas seriam “criadores de irrealidades”, uma vez que o ponto de vista vai se retraindo até romper a barreira ocular, chegando ao que o filósofo chama de intra-subjetivo. Isto fica posto no ensaio “Sobre o ponto de vista na arte”. No texto maduro e convergente de algumas idéias encontradas no referido ensaio, ou seja, em “A desumanização da arte”, o autor coloca que a arte jovem, a arte de vanguarda, é uma arte artística, uma arte para artistas, devido necessariamente a esse ponto de vista intra-subjetivo, o qual cria irrealidades. Contudo, veja-se se é isso o que se passa quando da apreciação do filme “O Mistério de Picasso”, de Henri-Georges Clouzot. Na referida película vê-se o artista espanhol em work in progress, como era de seu feitio se apresentar. Para tanto se fez necessária a utilização de material especial para que as obras pudessem ser capturadas pela câmera. Mas volte-se à questão a qual inicia o texto.
As obras apresentadas por Clouzot pouco têm que ver com o cubismo analítico, o qual se propunha a oferecer de uma só vez todos os lados de um objeto, daí a sua natureza de recorte e de composição de ontologias regionais, para citar um termo husserliano bastante aparentado. A exceção das pinturas em preto e branco, nas quais se pode perceber de uma só tacada a fronte e o perfil de um mesmo rosto. Tem-se, por seu turno, expressões do cubismo sintético, o qual parte tanto do problema principal da pintura de Cézanne quanto da escultura africana para a estilização da representação humana. E eis por que Ortega y Gasset trata a arte de vanguarda como desumana; ela pretende fugir de uma representação que pinte o homem como ele aparece, como se dá na realidade. Nesse sentido para ter razão o filósofo espanhol em falar de uma criação de irrealidades; no mínimo, uma arte que busca prescindir algo do real, até chegar à radicalização com a pintura abstrata. Entretanto, faça-se um parêntese e se volte ao filme.
Narra Clouzot o quão bom seria caso se pudesse apreender a criação de um Rimbaud ou de um Mozart. E é isso que ele pretende e mostra em seu filme, salientando que a pintura seria uma arte mais própria para tanto. Contudo, a noção decisiva para a análise sem a ser a do erro. Fala ainda o diretor que se poderá perceber esse olhar no escuro da branca tela a partir do qual o pintor constrói a sua obra. Chega quase a ser um leitura mais afeita à escultura, como se o ser pintado já residisse na virgem superfície; antes a pintura trabalha com a adição, em vez da subtração, como na escultura em mármore: desta feita, é mais próxima de Giacometti do que de Michelangelo. A possibilidade do erro, ainda mais na construção por adição, demonstra o caráter de devir da criação artística. Assim sendo, embora já se tenha em mente algo acabado o qual se quer produzir, a própria natureza da obra, por assim dizer, exige alterações no imaginado para que se alcance uma realização cabal. É fundamental quando Picasso de que está satisfeito ou insatisfeito com o que estava a fazer. Demonstra a própria fluidez do ato artístico enquanto atualização. Embora a obra acaba possa carregar uma noção de momento apoteótico, como trata Nietzsche, apolíneo em sua “necessidade” de assim o ser, apreende-se a noção de devir na própria criação. Esta, portanto, faz parte do real nisso em que, nos termos metafísicos, vem-a-ser. Ou seja, sendo o devir componente indiscutível do real, da natureza, tem-se, então, na fluidez da criação artística a sua pertinência e afirmação, até certo ponto, do real. Contudo, uma representação, seja ela artística ou não, nunca esgotará a vida, pois, para isso, seria necessário que ela tivesse e chegasse a um fim, o qual seria estabelecido. Tem-se, assim, do qual fala Camus como umas das possibilidades de se dar a arte.
Entretanto, perceba-se ainda outro momento do filme, qual seja, a última obra criada por Picasso. Nela, o artista espanhol começa pintando algo bastante diferente daquilo que deixará por final. E não se trata aqui da alteração de uma cor, uma luz, um efeito que viesse a calhar melhor na representação do ideado, o que faria parte do “erro”. A questão que se passa é a mudança na própria temática, do próprio representado que vai mudando seguidamente com progress of the work. Não vem nem a ser a mudança de uma representação clássica para uma cubista, como acontece na peça do touro chifrando o toureiro. É a mudança de uma mulher de biquíni na praia para um casal, e desta para uma mulher sozinha... Trata-se da fluidez, do devir permanente da obra, sempre se recriando até que... fenece. No devido caso, Picasso destruiu todas as obras que fez, e Omo que elas não permaneceram como aquele momento apoteótico referido outrora, como efêmero eternizado. À sua destruição encerrou o seu caminho no devir de ser.
Contudo, a destruição das obras fazia parte do contrato, quiçá para qualquer função em relação ao filme. Mais das vezes mantém-se a obra como o momento apoteótico, como efêmero eternizado, como... afirmação da vida a partir da criação artística. E, desta feita, estabelece-se não só o seu caráter de realidade, mas a sua própria manifestação e razão de ser advindas da realidade.