sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Arca Russa, de Aleksandr Sokúrov.

Não se imaginaria que do cinema russo, então soviético, pudesse se extrair, cerca de oitenta anos depois, algo como “Arca Russa”, de Aleksandr Sokúrov. Ora, vem a ser esse filme a negação completa do que é conhecido como montagem russa. Quiçá, esta película seja o extremo oposto do cinema pensado por Eisenstein, algo mais próximos às teorias de Bazin ou aos filmes de Robert Bresson. Ademais, essa dicotomia toca profundamente na questão do tratamento da realidade. A película de Sokúrov tem 97 minutos ininterruptos, durante os quais apresenta o Hermitage. Não há qualquer corte, e, desta maneira, a montagem é mínima, atendo-se apenas às questões de créditos. Eis o que vai de encontro com o cinema de Eisenstein e o aproxima de Bazin e Bresson, assim como da nouvelle vague, escola que nasce das reflexões daquele ensaísta do Cahiers du Cinemá.
Sokúrov apresenta três séculos de história russa utilizando-se, para isso, do Hermitage e de um personagem que vem do futuro e, por isto, pode apresentar tudo o que se passa fantasmagoricamente na película. E, mais capital, apresenta esses três séculos da história de seu país de maneira quase que imparcial. Eis também onde Sokúrov se aproxima de Bazin e Bresson e se distancia de Eisenstein: para o mestre da montagem soviética não se trata de filmar com imparcialidade, mas de incutir o sentimento preestabelecido no filme para que o espectador o absorva exatamente esse sentimento inserido na obra. E, para tanto, Eisenstein não se furta a mudar a história de seu país. Eis o motivo do uso da montagem dialética, a saber, para, com a manipulação da estrutura fílmica poder manipular as sensações do espectador. Montagem aqui não é técnica que envolve o público, como na montagem paralela de Griffith, mas um recurso ideológico para a educação do proletariado, como bem se percebe em “Outubro”, onde a própria história da Revolução Russa é alterada. Assim, a montagem em Eisenstein é ideológica e condutora do espectador.
O que se passa com Bazin e Bresson é exatamente o contrário: trata-se de usar a montagem o mínimo possível para que não se fuja da realidade ao abusar daquela. Desta maneira o que importa para estes franceses é a representação pura e simples do real, e, portanto, escamoteia-se a montagem que induz o espectador a sentimentos e leituras definidas de antemão; não se tem, então, a montagem ideológica, e isto devido a outra particularidade daqueles franceses, qual seja, o catolicismo. Ambos têm um sentimento religioso muito forte e isso também influi na concepção de cinema, pois, quando se trata de representar o real sem montagem, ou seja, o real como é, a intenção é que se pereba, no real, uma manifestação divina. O real, para ambos, é o espaço privilegiado donde pode se dar uma epifania. O cinema, então, é um médium para a apreensão de Deus, e, destarte, aproxima-se de Schopenhauer, enquanto que Eisenstein estaria mais perto de Aristóteles, uma vez que a catarse, para o estagirita, é ética, e, portanto, política. Voltando, uma vez que para Bazin e Bresson o divino pode ser manifestar no real, o cinema não pode montá-lo ao seu bel prazer, mas, apenas representá-lo, e fazer uso da montagem só quando necessário, pois, fim das contas, também é questão técnica, e o cinema só consegue se estabelecer devido a montagem, e, mesmo era impossível um filme sem cortes, como ainda é o caso de “Festim Diabólico”, de Hitchcock, como se verá mais adiante.
Ora, tampouco o que se passa com “Arca Russa” é esse tratamento do real como campo de manifestação divina. O que Sokúrov realiza é mais aquém, entretanto, mais complexo. Note-se que, ao escolher filmar a história russa a partir e dentro do Hermitage, o diretor faz a escolha de representar um passado apoteótico russo, e, apoteótico no sentido que esta palavra tem em relação às artes plásticas como insere Nietzsche em “A vontade de poder”. Assim sendo, nas artes apolíneas, e aqui somando-se à pintura e escultura tem-se a arquitetura. Faz-se necessário aqui lembrar que para o filósofo do martelo esta arte apoteótica seria necessariamente a arte apolínea, uma vez que fixa, mais do que qualquer outra, o seu objeto de representação. Entretanto, sendo o cinema movimento, ou, quiçá, mais propriamente fluxo, Sokúrov consegue imprimir essa qualidade de fluidez àquele passado apoteótico; dá à película, portanto, o seu quinhão de devir. E não é senão a noção de arte dionisíaca. Ainda mais pelo fato de não haver corte no filme, este se passa como uma dança contínua e, talvez não seja sem razão que a película se encerre com um baile, ou seja, com música e dança. Destarte, todo o filme se passa como um fluxo de momentos apoteóticos da história russa; um continuo fluir dionisíaco balizado por belezas apolíneas. E, não fosse o roteiro algo fantástico, todo o filme se ateria necessariamente ao real. Nesse sentido ele fracassa; não na aspiração de uma representação quase plena da realidade, mas no que tange à inserção do fantástico.

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“Festim Diabólico”, de Hitchcock se passa quase que exatamente como o filme de Sokúrov, a não ser por duas exceções: primeiro, por questões técnicas, o diretor inglês foi obrigado a fazer cortes, dada a duração do material de captação; contudo, Hitchcock efetua esses cortes de maneira que não se os perceba, mantendo, então, a noção de plano-seqüência; segundo, o filme, embora gire em torno de uma situação absurda, por assim dizer, não parte para o fantástico, i. é, não tem confusão de passad e presente como em “Arca Russa”; aqui pode-se afirmar que a duração da película é propriamente a duração da ação, uma vez que não se tem cortes temporais. Ou seja, toda a ação se passa no presente, sem flashback ou forward. E outra característica que acentua o fluxo da película é a ausência da preocupação plástica exacerbada. Ambas as películas, por fim, têm que encerrar o fluxo, dada a natureza própria da arte e do funcionamento do ato reflexivo humano, e, ademais, como ressalta Ortega y Gasset, por não se poder conhecer o começo e o fim da vida, uma vez que esta é contínuo executar-se. Há que se fazer um recorte para que se tenha uma representação artística, pois não se pode ter uma representação ad infinitum. O recorte de vida artístico funciona como o conceito filosófico: possibilidade fixa de apreender a realidade.

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Diferenças a parte, o que se apreende de ambos os filmes, de uma forma ou de outra, é a decisão de encarar a realidade com o fluxo, o devir que esta é, e não como se queira interpretá-la, direcioná-la, montá-la de acordo com parâmetros exacerbadamente racionais. A razão tem que trabalhar dentro da realidade e não fazer como que esta se adéqüe a si; ou seja, não distorcer a realidade para agradar os caprichos da razão. Trata-se, assim, nas duas películas, de fazer esforço para que, a partir dos meios que se tem, poder representar a realidade em seu devir constante, ainda que tenha que parar em certo ponto. O contrário faz Eisenstein: esforça a realidade para que esta atinja os fins da razão. A ditadura da razão pode seduzir que já é afeito a ditaduras. Mas, a quem apetece as coisas como são e estão, em seu desenvolvimento natural, e, portanto, real, faz da razão apenas meio de apreensão e instrumentalização desta.
Ademais, ambos os filmes demonstram a maneira mais bem acabada que se conhece para a representação que se conhece para a representação da realidade através de imagens: o plano-seqüência. A montagem russa está para ditadura assim como o plano-seqüência está para a liberdade.

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