quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Hopper pintor do vazio: o penúltimo pintor visual


Antes de tudo esclareça-se o título, o qual parafraseia o capítulo “Godard pintor: o penúltimo artista”, de “O olho interminável” de Jaques Aumont, no qual o crítico francês trata da dificuldade de filmar no cinema depois de 1980; esta obra de Aumont será importante aqui, mas não neste tocante. Ainda nela o autor fala de uma tentação de se ler a história da pintura a partir da mudança da pintura tátil para a pintura visual. É o que faz Ortega y Gasset em “Sobre o ponto de vista nas artes”, por sua vez versando sobre a mudança entre o que chama de pintura próxima e pintura distante. E nesta leitura de câmbio pictórico é que se sustentará o presente texto para que se chegue ao pretendido.
Deste modo, Ortega y Gasset começa a sua leitura a partir do Quatrocento, o qual é eminentemente tátil, ou próximo – o afresco e retrato romanos, bem como a pintura bizantina e a Idade Medieval média não o serão, dada a impossibilidade da representação da terceira dimensão, ganho pictórico o qual se inicia com Giotto, Masaccio, Fra Angelico, entre outros, no referido período inicial tratado pelo filósofo espanhol. Mesmo assim, esses artistas pintavam cada objeto como se fosse único, da forma que cada representação se mantém próxima do observador, de maneira que todos os objetos pintados são táteis, i. é, tem em si tal corporiedade que pensa-se poder tocá-lo. Isso contribui para o passeio do olhar do expectador pela superfície da obra, o que acaba não lha concedendo unidade sistêmica.
No Cinquecento, por exemplo com Rafael, ganha-se em questão de univade da obra. Embora ela ainda seja tátil, a construção, ou o que Ortega y Gasset chama de arquitetura da obra, consegue impedir que o olhar vagueie pela superfície pintada, concedendo-lhe, assim, mais sobriedade. No entanto, maior ganho neste sentido obtém-se na perspectiva atmosférica de Leonardo e a vindoura noção de flou da obra, o que, se não concede uma unidade arquitetônica à pintura, acaba por suplantar a característica tátil de alguns dos objetos representados, e, assim, preparando uma pintura com características mais visuais e distantes, em contraposição ao caráter tátil e próximo.
Ainda para Ortega y Gasset a primeira forma puramente pictórica que concede unidade ao quadro consiste na técnica do claro-escuro: a unidade de leitura se dá pelo elemento da luz, onde os pontos luminosos da pintura fazem a leitura integral da obra por um viés puramente sensorial (visual) e não mais de ordem racional (como a perspectiva geométrica e a noção de arquitetura). Contudo, para o autor espanhol, isso é menos uma atitude de ponto de vista do pintor do que uma técnica unificadora. É um passo para o distanciamento da visão, mas ainda é possível o passear do olhar pelos pontos luminosos na superfície da pintura.
Um parêntese. Para Ortega y Gasset, e mesmo seja verdade, El Greco, neste sentido, consiste num retrocesso, pois sua pintura é eminentemente tátil, e sua possível modernidade se consistiria não mais do que a sua paleta, tão afeita à limitação de cor de alguns quadros cubistas, como bem nota Modigliani acerca destes. Por sua vez, Tintoretto ganha em profundidade, por mais que seja tátil, dado o uso inaudito que faz da perspectiva: por vezes acentuadíssimas, por vezes mais de uma numa mesma pintura, quando não ambos os princípios juntos. Contudo, pintor de transição, maneirista, não leva a cabo o câmbio.

A mudança da pintura próxima para a distante, ou ainda da pintura tátil para a visual se dá com Velázquez, como atesta Ortega y Gasset e corrobora Aumont. A qual se constitui na fixidez do olhar por parte do artista. Desta feita, fixando-se o olhar do pintor, os objetos a serem representado “vão em direção a este”, e não o contrário, de maneira que o olhar não passeará jamais. Distante porque os objetos já não estão mais próximos do observador, portanto, perdem o caráter tátil, que tem que ver com a pintura próxima. Assim, em vez da pintura distante ser tátil, ela é visual: não se tem a tentação de tocar os objetos pintados, apenas de pode vê-los. Velázquez se constitui na fixação do ponto de vista do pintor, e, portanto, do observador; representa o que o autor espanhol chama de pintura do oco. Acerca disso uma última consideração paradoxal: o ponto de vista distante é mais próximo do olho, dado o retraimento da retina (tenha em mente a clássica pose do artista na obra “As meninas”).
Adiante, essa mudança no olhar do pintor tem novo capítulo no impressionismo, onde a visão continua se aproximando do olho, chagando aqui a tocar o próprio globo ocular, como percebe Ortega y Gasset. Ainda segundo o filósofo espanhol, o que se passa na pintura impressionista é a pintura do próprio ver, do ato mesmo de enxergar. Assim sendo, não será uma pintura tátil, por mais que se percebam manchas de cor soltarem da tela. Acontece que, dada a preocupação de pintar a luz sob os objetos, até descaracterizá-los, acaba impossibilitando o caráter tátil possível da pintura. E, dada a contínua mudança do ponto de vista, desta vez chocando-se com o próprio olho,a pintura impressionista acaba por trazer todos os objetos representados a partir de sua luz para “fora” do quadro em direção ao observador, o que não concede o caráter visual à pintura impressionista, uma vez que não é possível a pintura de oco. Tem-se ainda no impressionismo a manutenção do flou e de certas características da perspectiva atmosférica, notadamente a questão de tonalidade em relação a presença do ar em torno do objeto representado. Assim, por vezes pode-se perceber uma característica tátil, por vezes visual, a depender da construção do quadro, mas nunca absolutamente: Manet, por exemplo, será mais tátil; Monet, por sua vez, mais visual. As paisagens de Van Gogh e Cézanne talvez sejam ambos, concentrando como nunca a questão de superfície e profundidade na pintura (não é por acaso que Merleau-Ponty encontra em Cézanne o leitmotiv para essas questões).
As vanguardas, de acordo ainda com Ortega y Gasset ultrapassam a barreira ocular e passam a pintar o que o filósofo espanhol chama de “intra-subjetivo”. Desta feita passa-se da pintura do objeto para o ponto de vista do sujeito, desta para a representação do próprio ato de ver até o interior do pintor. Diz ainda o autor que os pintores de vanguardas são “criadores de irrealidade”. Portanto, basta observar, visuais estas pinturas nunca serão, pois não há a centralização do ponto de vista do pintor. Ter-se-ia aqui algo mais que ver com perspectivismo, no sentido filosófico. Serão, quando se reconhecer algum vestígio de natureza, pinturas no máximo táteis.
Entretanto, Edward Hopper, pintor americano, consegue romper uma possível impossibilidade da pintura visual. Artista de difícil classificação, se é que há uma. Começa com preocupações impressionista, como atesta a fase européia, e a questão da luz sempre será importante em sua obra. Por vezes é considerado integrante da american scene, embora os pintores desse movimento se valham muito da ironia e Hopper vai muito além disso. Não é propriamente realista, uma vez que afirma, com Degas, o valor da memória e imaginação ao representar uma cena. E também alguns de seus “enquadramentos” ou “perspectivas” podem remeter ao pintor das bailarinas. Nunca poderá ser hiper-realista ou pop como serão Chuck Close, David Hockney ou Warhol, por mais que elementos caros a esses artistas estejam já em sua obra, como as propagandas.
A obra de Hopper se principia sempre contendo expressões da natureza e expressões da civilização lado a lado, como já atesta a fase européia. Contudo, quando o artista passa a pintar os temas americanos isso se acentua, e o primeiro grande motivo então passa a ser o limite entre natureza a civilização; e, no mais das vezes, é uma muda afirmação da civilização ante uma natureza que a circula e se mantém intransponível por vezes: sempre casas solitárias, linhas férreas o estradas. Como que representasse uma consciência ante o deserto, sendo a civilização a consciência e a natureza o intocado: a prostração ante o vazio em seu primeiro viés. Nesses temas Hopper por vezes é tátil, por vezes visual, tudo dependendo do ângulo, da perspectiva adotada.
Hopper chega aos quadros de civilização pura. Sempre com perspectivas inauditas, pouco aparece figuras humanas: quando aparecem mais de uma ,estão perdidas; quando apenas uma, esta está desolada. Ao cabo, as marcas da civilização se sobressaem ao próprio homem, apequenando-o. Dir-se-ia alienando-o, e eis mais outra característica da obra de Hopper: a alienação, ou melhor, o estranhamento do homem, tal é a situação na qual ele é colocado (não se pense no estranhamento no sentido marxista, em que o homem é estranhado da realização de sua essência enquanto trabalho: estranhamento de si consigo mesmo e logo mais se chegará à alteridade). Ademais, aqui o artista americano sempre será visual: nunca se poderá tocar nada, ou seja, trazer o objeto representado para si, a obra, por fim, mais perto de si: é o estranhamento do observador: não há catarse: outro viés do vazio.
Por fim, estabelecida a civilização, Hopper concebe grupos de pessoas, o que não pressupões qualquer comunicação entra elas; pelo contrário: não há qualquer manifestação entre as pessoas representadas dentro do quadro. Todos olham ou agem em direções diferentes: não há qualquer manifestação de relação, ligação entre elas; ou seja, não há amor, caso se fique mais uma vez com Ortega y Gasset, agora em “Meditações do Quixote”. Eis mais uma representação do vazio.
Contudo, o que possibilita a representação do vazio e a pintura visual em Hopper, por mais que a sua preocupação seja a luz, é a escolha da perspectiva. A perspectiva em Hopper é sempre inaudita, e, diga-se, tem muito mais que ver com enquadramento de cinema do que uma mise en scéne plástica clássica. Ademais, entre a dicotomia da pintura e do cinema, onde aquela se preocupa com a representação de um instante pregnante e esta com o fluxo do movimento da ação, por mais que a escolha do a ser filmado seja uma escolha de um fluxo pregnante, Hopper carrega esta idéia de instante grávido que fora perdido na pintura de vanguarda. Contudo, ao tomá-lo a partir de certas da perspectivas de cinema (geralmente planos gerais ou médios ou plongée), ele quebra a aura de significação latente do instante grávido de algo importante para torná-lo banal, e, assim, vazio. Os personagens sempre são vistos de maneira e não se comunicarem, o que quebra a “gravidez comunicativa” do instante. O instante pregnante de Hopper é o instante do vazio. E toda essa, agora sim, mise en scéne à moda moderna, a qual represente o vazio, só é possível através da pintura distante, da pintura visual. Dada a pintura tátil, haveria comunicação, se não entre os personagens, pelo menos com o observador, enquanto catarse. Mas essa não é possível graças ao tratamento alienante que paulatinamente Hopper vai executando, o que só é possível na pintura visual.
Hopper nunca reconciliará. Eis o penúltimo pintor visual: eis o pintor do vazio.

2 comentários:

Flor de Bela Alma disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Gente que não se dá o respeito é peso, né?