sábado, 28 de junho de 2008

Acerca da Trilogia do Silêncio, de Ingmar Bergman.


A Trilogia do Silêncio, composta por Através de um espelho (1961), Luz de inverno (1962) e O silêncio (1963), talvez se constitua no eixo de mudança das preocupações temáticas do cineasta sueco. Sabe-se que, pelo menos desde O sétimo selo, as suas preocupações são de ordem metafísicas, notadamente a questão do fenecimento, da morte, e digressões entorno da natureza divina. E é justamente na referida trilogia que se tem a acentuação desses temas nas películas de Bergman, ainda que de forma meio imbricada e, pode-se dizer, com certa carência de linearidade.
Em Através de um espelho temos a história de uma família, especificadamente, um pai escritor, seu filho adolescente, sua filha doente e o marido desta. Dada a enfermidade da moça, castra-se a sexualidade do casal, a que o marido (vivido por Max von Sydow) tolera pacientemente. Entretanto, a enferma fica constantemente realizando jogos sexuais com seu irmão – e a cena em que este derrama um balde de leite não é despropositada. Assim, enquanto brinca sexualmente com seu irmão, rejeita o marido – e talvez não seja por acaso a escolha de Max von Sydow para o papel, uma vez que todos os personagens que este trabalhou com Bergman têm característica de sempre cumprir o seu dever; e ele cumpre o dever do marido negado e paciente com a doença de sua mulher.
E, no tocante à doença dela, o que o pai faz, como escritor que é, é justamente anotar, passo a passo, o progresso da enfermidade de sua filha. Ao saber disto, o seu genro procura entender o que se passa na cabeça de seu sogro que, como pai, pouco se preocupa com sua filha e todo o interesse vertido nela por ele é de ordem literária. A discussão entre os dois termina na negação de Deus por parte do pai. E, uma vez dada a negação de Deus, a aposta do pai para uma explicação e, talvez, mesmo uma justificativa, é o amor. Ao cabo da película, a filha, num momento de epifania, vê Deus na figura de uma aranha, e, logo mais, vai interna.
Em Luz de inverno a temática metafísica é abordada através do suicídio. Desta feita, o personagem de Max von Sydow, ao saber que a China tem a bomba nuclear chega, pode-se dizer, a constatação do absurdo da existência. Desta maneira o referido personagem vai a procura do pastor para ser consolado, por assim dizer. Acontece que o próprio pastor perdeu a fé, e, portanto, sua ajuda se mostra vazia: eis uma das formas nas quais de pode reconhecer o silêncio.
O personagem de Max von Sydow por fim comete suicídio, dada a impossibilidade de ajuda, mesmo comunicação entre si e o pastor. Ademais, este mesmo reconhece sua perca da fé ao dizer que Deus está silencioso: outro viés do mesmo tema. Ora, o pastor acreditava numa relação muito particular sua com Deus: um entendimento perfeito e abstrato o qual cai por terra dada a morte de sua mulher. Tudo se passa como se ante os desastres terrenos a divindade seja muda. Em adendo, cabe notar que este pastor acredita em um Deus-aranha, o que remete à epifania gozada pela personagem de Através de um espelho. O que vem a ser esse deus-aracnídeo pouco se sabe.
Ainda em Luz de inverno tem-se o conturbado relacionamento entre o pastor e uma professora local. Esta ama aquele, que a odeia. Assim sendo, estabelece-se uma relação amorosa que não dá em nada, fadada ao fracasso, o que já se poderia perceber na primeira película da trilogia. Portanto, mais uma vez o amor se mostra silencioso. Neste tocante é importante notar que a aversão a qual o pastor tem pela professora se inicia quando esta lhe mostra as chagas as quais possui. Ou seja, a qualquer aberração corpórea o amor pode se apagar. Destarte, a característica sublime e possivelmente redentora deste se mostra castrada por um simples evento carnal.
Já em O silêncio temos a radicalidade de todo o tema. Aqui, sequer os problemas metafísicos são colocados: parte-se do dado concreto das relações humanas e as preocupações acerca desta. Eis então a viravolta na temática de Bergman, a qual vai paulatinamente se deslocando da ordem metafísica para a ordem dos relacionamentos. Tem-se, desta feita, duas irmãs e o filho de uma delas, viajando de trem até que são obrigados a parar em uma cidade estranha. No próprio comboio já se percebe o distanciamento entre as duas irmãs e desta em relação à criança, que brinca sozinha no corredor.
Ao chegar à cidade estranha, da qual nada se conhece, nem mesmo a língua (e isso é capital), se instalam em um hotel, ocupando um aparelho com duas câmaras distintas e ligadas entre si. A criança sai em peregrinação solitária pelo hotel até que encontra um grupo de anões circenses, com os quais começa a se entreter, a manter relações amistosas. Contudo, sua mãe acaba por descobrir o seu paradeiro e, por fim, leva-o embora de sua satisfação lúdica. A criança dá banho em sua mãe e depois esta sai, deixando-a com a tia, que está doente. Dado um certo momento o serviço de quarto se apresente e a comunicação se mostra deficitária. Entretanto, depois, a criança consegue se entender parcialmente com o criado.
Enquanto isso, a mãe vai sozinha a um café, onde flerta com um rapaz e, depois disto, termina em um teatro, onde se vê voyeur de uma relação sexual a qual acontece a sua frente. Narra o fato a sua irmã e depois têm qualquer discussão. A mãe então parte para um encontro amoroso com um homem que havia conhecido na ocasião da ida ao café. O próprio ato sexual se mostra complicado, e, ao cabo deste, sua está à espreita, atrás da porta. No final do filme, a mãe parte com a criança, deixando sua irmã doente convalescendo aos cuidados de outrem. Esta entrega a seu sobrinho uma relação de palavras da língua estrangeira e suas respectivas traduções. Não por acaso ela é tradutora: eis a exposição que mesmo com o conhecimento de várias línguas a torre de Babel se estabelece. A comunicação ou é impossível ou é inútil, e, destarte, manifesta-se o silêncio.
Agora, um parêntese. Ortega y Gasset, partindo de Spinoza e seu amor intellectualis, define a filosofia com ciência do amor, em seu primeiro livro, Meditações do Quixote. Ainda, estabelece o filósofo espanhol que o amor é, digamos, esse desejo de construir relações entre as coisas; e, isso pode se dar tanto no âmbito intelectual, ao, em filosofia, querer-se construir relações entre coisas e fenômenos para poder explicá-los, como também, logicamente, no tocante humano, no que tem que ver com o homem e suas relações com os outros. O ódio, em contraposição, se dá pela não relação entre as coisas, entre as pessoas, portanto.
Estabelecida essa digressão filosófica e, dada a impossibilidade de resolução das questões metafísicas no âmbito divino, uma vez que Deus está silencioso, também se transparece como fracassada a aposta no amor, nas relações humanas como forma de sanar os problemas existenciais, uma vez que também a comunicação dos homens entre si se mostra inútil, deficitária, e, desta feita, castra-se a possibilidade de relação satisfatória entre eles, e, portanto, o sucesso do amor em responder essas questões. Mesmo o que subsiste demonstrado em toda a trilogia seja um ódio entre os personagens; ou seja, a impossibilidade de relação entre eles. Ao cabo de tudo, fica-se com um inconsolável solidão.

2 comentários:

Flor de Bela Alma disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flor de Bela Alma disse...
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